23 de novembro de 2014

Quinta tentativa de refazer um percurso aleatório

Há sempre um nó, um casco, um emaranhado, uma massa. A proximidade da baía traz sem falta a mesma lembrança. Acelero para não ver. O vulto passa à direita e se confunde com a silhueta das árvores. O semáforo seguinte está fechado. Dois dias no mesmo lugar, dois dias e um novo hábito: dormir na sala. O carro morre. Poucas pessoas atravessam a avenida neste ponto. Agora posso voltar àquela casa. Da outra vez era inverno, usávamos roupas de lã. A televisão fica ligada o tempo todo. Esqueço de fazer a curva.

12 de outubro de 2014

Quarta tentativa de refazer um percurso aleatório

Aos poucos a imagem arrefece. O movimento dos carros agora é o movimento de sempre. A ordem, o tamanho, as cores dos automóveis não significam nada. Assim como as letras pintadas no viaduto. Atravesso a passarela com displicência, um pouco incomodada pelo fato de que é domingo e a cidade se espalha em uma longa sequência de bifurcações. Alguns semáforos não funcionam. Outros acendem para o nada. Enquanto caminho, esqueço a paisagem. Por isso aos poucos a imagem arrefece. Os detalhes se apagam no fundo da gaveta como letras impressas em papel térmico. Não sei em qual país. Alguém sai do estacionamento em direção à festa. É a mesma festa de antes. A pessoa aparece na porta com dois copos na mão. Faz muito frio. Todas as cenas atreladas a uma temperatura. Os casacos evitam o choque. A mesma pessoa acena de longe, depois se aproxima. Penso em ir embora. Faz muito frio.

28 de setembro de 2014

Terceira tentativa de refazer um percurso aleatório

Café coado no lenço de papel. Comida sem sal. Atravesso a Avenida Paulista com um travesseiro na mão. Termina a quinta-feira. Lavo parte da louça. Deito de costas para a janela. Não me concentro em nada. Faço de conta que estou à vontade. Espalho pequenos objetos pelo quarto. Improviso um escritório na mesa de jantar. Macarrão com queijo. A mala abarrotada de peças inúteis. Faz frio à noite. Arrasto os chinelos pelo apartamento, pela calçada. Acabou a água. Não vejo graça nos arranha-céus. Resisto ao coro dos alto-falantes. Décimo primeiro andar. O elevador demora. Há poucos motivos para sair. O elevador demora. Macarrão com queijo. O saco de lixo é sempre grande. O elevador demora. Confundo os nomes dos bairros. Pego o ônibus certo no sentido contrário. Macarrão com queijo. O porteiro não me cumprimenta mais.

20 de setembro de 2014

o menor osso do corpo é o estribo

Gosto da mesma coisa que não gosto: o tufo de pelos no canto da sala. A maneira incisiva como opina sobre livros e placas. O fato de que nunca se afasta da conversa e, quando alguém se afasta, tenta resgatar com perguntas fechadas. A música da banda que não existe mais, o avião desaparecido. A palavra obsoleta que descreve o mesmo fato e causa espanto. O jeito feroz de adivinhar pensamentos com base em outras mulheres - se me transformo na bruxa. Quando aponta uma imagem banal e depois esquece. Quando dirige e se perde. Quando estrala os dedos e examina em detalhes as tatuagens da adolescência. O tamanho dos ombros. A forma como as motocicletas estacionam. Quando prepara o almoço e exagera no alho. Quando erra a soma de dois números. Quando se atrasa - sempre se atrasa. Quando dorme.

13 de setembro de 2014

tudo o que há para ser visto



seria preciso abandonar o refúgio da hipótese e partir em direção a um campo bem menos solidário às nossas investidas, sem esquemas de conduta ou viagens no final do ano, sem nada realmente justo do ponto de vista da recompensa, e torcer por uma aparição repentina, por um pedido de vigilância e proximidade, ainda sem sinal de concordância, só o corpo e sua figura pacata, só isso flutuando em nome de um passado mais recente, porém inviolável, só isso ganhando o território como quem aposta um olho na guerrilha, o outro no deserto e o restante empenhado na fuga, ainda sem qualquer prioridade ou instância de defesa, só isso e a trilha a ser aberta no meio da mata, onde por força do tempo adivinhamos as primeiras pegadas, ainda assim na dependência do menor interesse, da menor lembrança, desvendando sentidos ocultos em bilhetes escritos às pressas, não por falta de opção, mas por desleixo, só isso e o círculo que encolhe um pouco a cada dia, ainda sem golpes de sorte ou marcas na pele, só isso e a passagem como prova, só isso e os termos de um acordo sem privilégios, só isso e o intervalo cada vez maior entre um ponto e outro.

7 de setembro de 2014

correção de deriva ou os efeitos do vento

No chão da sala. Os espelhos estão cobertos com papel pardo. A luz que incide aqui dentro é fraca e sem cor, estancada pelo papelão que reveste a janela. Assim que soube da torre, das ameaças e do número de mortos, passei a tomar providências. Distribuí os utensílios da cozinha em pequenos pacotes, as facas e descascadores, o abridor de latas, a tesoura. Enrolei fita isolante nos dedos das mãos e dos pés, mais sujeitos ao choque. Removi uma a uma as fotografias dos álbuns tomados pelo mofo e as organizei em pilhas / você para e observa a menor delas, antes de notar a mancha amarela sobre o papel. A mancha amarela é o casaco que ganhei de presente. Estou sozinha há quarenta e três dias. Continuo a imprimir teoremas matemáticos e a fazer anotações importantes na parede. Aqui e ali, me detenho nos pontos onde a tinta descascou. Você observa tudo de um ponto mais alto, como se buscasse uma visão geral da cena. Estou sozinha desde que saímos do salão. Da torre. Da festa suspeita em que deixei para trás o casaco amarelo. Você chega mais tarde e observa o cabide na entrada, depois desaparece. Continuo sozinha há quarenta e três dias. A água ainda escorre dentro da parede, mesmo com o registro fechado. O telefone fica fora do gancho. Você toca a campainha e estica a mão. Eu deito e durmo e no sono recupero a imagem das suas unhas recém-cortadas. Você não usa anéis, nem toca piano.

30 de agosto de 2014

Segunda tentativa de refazer um percurso aleatório

Eram cinco da manhã quando decidiu voltar para casa. A sala fresca e iluminada, com os restos do banquete ainda sobre a mesa, havia perdido seu prestígio. Desligou os aparelhos, apagou as luzes. Àquela hora a cidade estava tranquila, mas alguns carros ainda cortavam o ar atrás de festas e lojas de conveniência. Viu quando o guarda noturno ergueu o braço por cima do balcão para acionar a cancela. Acendeu os faróis, travou as portas e deslizou do acostamento para a pista da rodovia. Quinta marcha, oitenta quilômetros por hora e a vontade de que, por mágica, os vinte minutos do trajeto se reduzissem a dois. A temperatura no lado de fora era oposta à que fazia no interior do carro, onde já estava frio demais. Sentiu a garganta arranhar e abriu uma fresta na janela. O bafo quente da noite de verão imediatamente tomou conta do veículo, tornando a viagem menos confortável. Um carro preto passou pela esquerda e dois homens fizeram sinal, mas a película opaca a mantinha incógnita na escuridão que sobrevinha entre dois postes de luz. Acelerou mais. Noventa quilômetros por hora. Torceu para que os radares de velocidade ainda estivessem desativados, mas a multa de trânsito parecia um preço pequeno a pagar pela exaustão no final da madrugada. Sóbria, um tanto sonolenta. A música no rádio repetia o refrão: a Terra é selvagem, não temos tempo. Lembrou de uma carona, três dias antes, e de outra, na semana anterior. Duas pessoas que ali estiveram, sentadas a menos de quinze centímetros de distância e, no entanto, não esperava rever nenhuma delas. Era a primeira madrugada do ano. A primeira vez que dirigia, que ouvia a música e que desejava adormecer. Recordou-se por alto de um antigo hábito e tentou imaginar onde estariam os outros naquele instante. Concluiu que a maioria estava na cama, mas nem todos dormiam. Reduziu um pouco a velocidade na curva. Passando pelo cemitério, viu de relance o vigia prostrado na entrada, assegurando a integridade das sepulturas e de seus adornos. Os mausoléus de mármore. A promessa de paz. Um buraco no asfalto fez o carro tremer, exigindo mais atenção. Poucos metros até a avenida. Perto do manguezal, uma garota caminhava sem pressa com a mochila nas costas. Não parecia se dar conta da hora avançada. Perto dali um grupo se aglomerava no ponto do ônibus, esperando para ir ou para voltar. Mais adiante avistou uma pequena massa de automóveis parados em fila. Uma sequência de cones impedia o trânsito naquela direção. Nas primeiras horas, no primeiro dia, desviava do caminho mais curto. Tentava pensar rápido na melhor maneira de retomar o percurso. Uma manobra estratégica, assim precipitada. Virou à esquerda na praça, depois à direita na via paralela. Viu quando uma mulher de vestido branco passou com os sapatos na mão. A rua estava repleta de objetos. De vez em quando os pneus estraçalhavam um deles. Copos, garrafas, rolhas, fitinhas luminosas. Escutou o ruído noturno das latas batendo no caminhão de lixo e sentiu ainda mais sono. Virou à direita no casarão e finalmente atingiu a avenida em um trecho desbloqueado. Dali até chegar em casa, todos os semáforos do caminho estavam verdes.

27 de agosto de 2014

delonix regia

A casa não tinha mesa. Era uma daquelas casas em que os tijolos, o cimento e o reboco consomem todo o orçamento, restando pouco ou nada a oferecer pela mobília. Tentaram disfarçar a parca decoração com ideias acerca do uso do espaço, mas a verdade é que trocariam o discurso por um sofá. O homem tinha o hábito de tratar esse limite como parte de um projeto sempre provisório. Uma vez concluída a primeira construção, passariam a pensar na verdadeira casa - esta, sim, grandiosa. O dobro de andares, piscina, vista para a baía. No topo do morro, perto dos deuses. A garota mais nova se esgueirava pela casa temporária no meio da noite. Descia  a escada em espiral para admirar a planta baixa da mansão. Desenrolava o papel como se este fosse uma espécie de pergaminho milenar que o manuseio indolente poderia extinguir. Percorria com os olhos os corredores, os quartos espaçosos, as salas onde vislumbrava cadeiras douradas, lustres de cristal e até um piano. Enquanto isso, a chuva ameaçava derrubar o muro que os defendia da encosta, e assim o fez por duas vezes no mesmo ano, arrastando grandes quantidades de areia e barro alaranjado para cima do carpete.

17 de agosto de 2014

a clock is a clock is a clock is

Últimos dias de desordem. Mesmo sem ponto de partida, o relógio parece menos assertivo. Hesita na virada do minuto. Sinuca estatística - já que houve momentos de mais e maior dedicação. Agora não. Talvez o tique-taque tenha captado a intimidade e julga agradar com tantas voltas. Uma fumaça invisível engolindo tudo. Uma coleção de pedras brancas. Uma última viagem. Nuvens carregadas e falsos ídolos / ninguém entende a graça do argumento. Às onze e cinquenta e dois, caio na armadilha do segredo, onde pensar equivale a fazer – e fazer mal feito. Chega ao fim a prece rogada na infância, quando os trinta anos remetiam ao infinito.

12 de agosto de 2014

arquivo morto nº 2

recolho os cacos maiores e espero até que venham me questionar sobre o barulho. o estilhaço como estratégia de resgate, após cinco dias sem nenhuma palavra. mas o andar de cima continua silencioso. talvez estejam fora desde ontem, me deixando agora encurralada entre a cortina e o tapete. tento alcançar o jornal para fazer uma ponte, um trilho, mas o movimento o sopra para longe, até chegar ao túnel de onde objetos desaparecem noite após noite. viro de costas. a folhagem não deixa mentir.

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passo a maior parte do dia entre a sala e o corredor dos quartos, esquecendo uma coisa a cada viagem, parando apenas para acender a luz e verificar o telefone no gancho. apesar dos sacos cheios de lixo, a casa tenta reaver a poeira espanada ao longo dos anos. ficam parafusos, pequenos buracos no concreto, marcas de pés e dedos gordurosos, panos encardidos. o assoalho está novo onde os móveis o pouparam do sol. desmonto prateleiras e estantes. separo algumas fotografias. os mortos que não podemos enterrar, então acendemos fogueiras ou os distribuímos em caixas cada vez menores.

(2008)

11 de agosto de 2014

arquivo morto nº 1

nós dois em dois minutos. elevador de emergência, um abismo. você abre a boca - faço companhia. prefiro não sair da cadeira que você comprou para dividir o nosso tempo em duas partes. funciona da seguinte forma: estou sentada procurando fotografias 3x4 da mulher que você deixou na capital federal.

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não consigo me livrar dos objetos que ficaram para trás. um a um persigo automóveis, placas, filmes de guerra. empilho porta-retratos. abro espaço na multidão. você está no encontro disso tudo, que - agora vejo - era só dever de casa. equitação. jantar a dois.

(2008)

10 de agosto de 2014

7

Magda atravessa a cidade sem nenhuma expectativa de ser reconhecida. Apesar de todos saberem sobre a torre, a imagem catatônica replicada mundo afora, apesar disso não esperam encontrá-la na rodoviária ou no semáforo. Por isso não a veem. Magda para no meio da passarela para observar o mar de pessoas e carros, a marcha que transfere tudo da origem para o destino, o moroso pêndulo que mesmo aos domingos oferece obstáculo à percepção do tempo. Permanece incógnita. Magda condena o fluxo e seu sistema de dependência mútua. Tem vontade de sair depressa, cruzar a via a toda velocidade e tomar a primeira saída. Mas mesmo a imagem hipotética se deteriora. Alguém vindo de São Bonifácio faz Magda perder a sincronia dos sinais. Ela para no meio do viaduto, indiferente ao deslocamento irrisório da última hora e meia. Olha para cima. Um helicóptero circunda a região central. Procura fugitivos, homens de capuz e canivete. Magda fecha a janela e o ar abafado lhe lembra da torre. O calor da fogueira colossal invadindo a saleta, derretendo plásticos, sufocando. Ainda no alto do viaduto, Magda olha para o lado e vê a ponte que nasce da avenida. Precisa alcançá-la mas o traçado a leva para longe, exigindo uma manobra irracional em primeira análise. Depois do susto, qualquer escalada, degrau ou parapeito se torna duvidoso. Tudo vai bem na passarela às seis da tarde. De repente Magda manifesta em série todas as doenças do labirinto cujo principal sintoma é a perda de equilíbrio. A mais concreta consequência: Magda não pode se manter de pé. No alto do viaduto, da passarela e da torre, tenta não ter medo. Olha em direção ao céu até localizar um pássaro ou objeto voador.

7 de agosto de 2014

Bloco A

Desisto de encontrar a chave. Tudo que carrego está sobre poucos metros quadrados. Papéis, moedas, cartões arranhados, manteiga de cacau. A chave não aparece e a bolsa do avesso mimetiza a cena do assalto. São três horas da manhã. Nem duas, quando poderia pedir ajuda, nem quatro, quando poderia me conformar. São três. Sentada no último degrau encosto a cabeça na parede de salpico, esquecida para fora sem saber se alguém espia pelo olho mágico. Tão inerte que a lâmpada se apaga. Poderia refazer o caminho por onde vim, varrer o cimento e a grama, mas é pouco provável que encontre a chave. A essa altura alguém a levou para uma coleção particular. Um jarro de vidro com uma centena de chaves e novos desabrigados. Às três horas da manhã, fico onde ninguém fica – no corredor sombrio, ponto de passagem que se abre para o crime no intervalo entre dois lances de escada.

4 de agosto de 2014

o desaparecimento de uma espécie

A dois dias de acabar o ano, devoro arroz às colheradas sem nenhum apetite. Mas é preciso comer, ocupar a boca, esquecido o instinto ancestral que luta para saciar a fome. As tartarugas marinhas sempre voltam ao lugar onde nasceram para enterrar seus ovos. No andar de cima, crianças batem panelas enquanto imploram pelo prato cheio. “Mãe, me dá purê de batata”, repete o menino sem parar e por isso fica de castigo. Também fui forçada a comer macarrão parafuso. A massa pálida sem molho, dando voltas e mais voltas, bamboleando ao toque do garfo. E a bruxa sempre atenta - qualquer silêncio transformado em sugestão de sua presença. Eu, por vingança, bebia os licores de pêssego do minibar e enchia as garrafinhas com água. Muitas tartarugas morrem logo depois de nascer, porque não encontram o oceano. Dois dias e o ano termina. Na boca do estômago, algo estranho se desaloja e tenta escapar. Febre alta, choradeira, vômito, gritaria. Ressurge o fantasma da antiga posição: condenada ao absoluto. Um. Tudo. Terra arrasada. Ser terrível. Morrer desassistida. A luz dos postes simula o reflexo da lua na água e atrai as tartarugas para a morte. Dois dias. Alguém começa uma contagem regressiva não-oficial às três da tarde. Na antiga casa da praia, colávamos cacos de azulejo na parede para formar o desenho de peixes e estrelas do mar. Também era dezembro. Apenas uma em cada cem tartarugas marinhas sobrevive até a idade adulta. Finalmente me decido: sentada sobre a pedra, com os fachos de luz salpicando o céu à meia-noite.

1 de agosto de 2014

Desfigurações secundárias (meditation on violence)


- O que é isso na sua perna? - pergunta a dona da casa com o indicador apontado para as manchas escuras na coxa direita, depois de quatro dias de cautela - vestidos longos, maquiagem e visitas noturnas à cozinha. Logo quando o roxo arrefece e dá lugar ao verde pálido... Puxo a camisola para baixo, num gesto tanto reflexivo quanto ensaiado, sem desviar os olhos da tela do computador. Desconverso:
- Como está o tempo lá fora? Pretendo correr ainda hoje.
A ideia da pergunta é dar à dona da casa a oportunidade de ser útil, coisa que a satisfaz mais que tudo, impedindo-a assim de persistir no assunto anterior. Porém a dona da casa sai do quarto sem recuperar o interrogatório, mas também sem dar resposta. Afinal compreendo: não gosta de perguntas que uma janela aberta pode liquidar. Teria sido mais acertado lhe pedir receitas de remédios caseiros para cólica.
Correr será agradável - assim me parece agora. O corpo furando o ar com velocidade, os pés em movimentos compassados, a música cada vez mais alta nos fones de ouvido. E depois o suor expiatório, o rosto vermelho como o das crianças brincando no inverno, os goles de água.
Ainda no quarto, mesmo sem ninguém por perto, estico novamente o tecido do pijama até os joelhos, na esperança de apagar as manchas nesta operação. Não gosto de ser surpreendida pela imagem. Cinco hematomas cravados na pele, formando a impressão de uma garra ladeada por dois semicírculos, onde o sangue coagulou em uma série de minúsculas bolinhas. Recordar o choque é um exercício de paciência e resignação. O cárcere do dia seguinte, a inquisição de sempre. Ao menos foi um ato de coragem. Ir até lá, colocar as cartas. Mas era só.
Correr já não é um bom plano, portanto. A bermuda subiria mais e mais a cada passada, terminando por descortinar publicamente as marcas na circunferência da perna, tais como as feridas abjetas de um bicho em estado de abandono. É uma leitura difícil de trazer à tona. O rubor da vergonha se confundindo com o da excitação pela corrida. Melhor dormir.
Neste momento o sol tenta se esconder. Deito e trago o lençol até o pescoço, aproveitando a extensão do pano para cobrir a pele inteira de uma vez. No semiescuro do quarto onde a luz do dia incide de maneira ambígua pelas frestas da veneziana, um pouco sufocada pela respiração que bate no tecido e retorna sobre meu rosto, tento imaginar separadamente os milhares de tons que fazem a transição do roxo escuro para o roxo claro e depois para o verde. Em seguida os outros vários que separam o verde musgo do oliva original. Dou nomes a todas as nuances que consigo imaginar, até que sinto as unhas se fincarem com toda a força na coxa direita. Mais nada. Quando acordo, um vigor intenso e repentino me faz saltar da cama.

31.12.2013

29 de julho de 2014

3

Deito no chão da sala, onde costumo ficar durante boa parte do dia sem nada nas mãos. Aqui deste ângulo, da altura do pó que a vassoura levanta, acompanho o estômago embrulhar com as horas em claro. Já são dezoito, talvez dezenove ou vinte, não contei. Acusa fadiga, fome, enjoo. A luz acabou por causa da água e do curto circuito. A última lembrança que tenho é do feixe azul cintilante. Um estrondo metálico. Encosto a cabeça no rodapé e deixo agir a gravidade da última noite, as horas assistidas de perto, minuto a minuto, palmo por palmo. Taquicardia. O olho vidrado testemunha o cão que ladra e embala o sono da vizinhança. Rolos e mais rolos de pensamento se agarrando uns aos outros como fios de cabelo a chiclete. Foi assim quando deixei a torre. Uma hora, duas, quatro. Apertava botões a esmo, acendia, apagava lâmpadas. Sacudia lençóis recém-lavados. Nada. O barulho da água nos tijolos mais nítido que nunca e o vulto no alto da passarela. Magda, Magda. Em outro estado, em outro fuso horário. Atravesso a madrugada. O desafio inane de manter-se vigilante, espécie de resistência sonâmbula à passagem das horas. Magda, Magda. Vinte e três, talvez mais. A água procura um buraco por onde escapar. Número de mortos em naufrágio sobe para 64.

21 de julho de 2014

Todo deslocamento é uma forma de catástrofe

Temos pressa. Vamos pelo ar, pela esteira turbulenta e volumosa, deixando para trás a monotonia dos viadutos, das pontes, das motocicletas. Abandonamos o asfalto, as dimensões tangíveis. Abrimos mão da sólida companhia dos arranha-céus. O barulho dos motores Rolls-Royce inunda parte da cidade com o mesmo efeito sonoro de uma sequência de trovoadas, reverberando sobre o oceano onde uma embarcação solitária emite sinais luminosos. Vai chover. Antes das primeiras gotas, mergulhamos na vasta massa de nuvens. O branco que passa veloz pelas janelas lembra um espetáculo de ilusionismo. Voamos a trinta mil pés. De uma só vez, as persianas caem para abafar a altitude, mas ainda é possível distinguir a curva acentuada para a esquerda. Entorpecidos pelo ar pressurizado, fechamos os olhos. Todos nós fechamos os olhos. Com a chegada da noite, passamos da condição visual para os instrumentos. Altímetro, velocímetro, tubos de pitot. A sincronia matemática dos aparelhos nos permite isolar a gravidade. Mas de um segundo ao outro, sem aviso prévio, todas as variáveis se misturam e já não é possível reconstituir os acontecimentos. O parafuso frouxo, o bombardeio inimigo. A pane do computador, o vazamento no tanque do combustível. O estol, o voo controlado em direção ao terreno. Um ângulo de ataque impossível. A rota de colisão. Primeiro a caixa preta.

12 de julho de 2014

4

Na torre era mais fácil. Uma escada de ferro nos ligava ao restante do mundo. Havia relógios de vários tamanhos e janelas falsas. A película sobre o vidro envolvia tudo e todos em um crepúsculo permanente, e a sala daquela maneira, coberta dia e noite pela penumbra, me trazia lembranças do carvão. Tudo tragado pelo alarme do computador. Depois daquele dia, foram outros nove no chão na sala com a televisão ligada. Se aparecia a fotografia da torre, desviava o olhar. Não comi. De vez em quando o telefone tocava: alguém com sotaque estrangeiro me pedia para olhar pela janela. Não olhei. Tranquei as portas e coloquei panos nas frestas. Quando fechava os olhos, surgiam vagos contornos geométricos, figuras rudimentares. Senti que precisava de superfícies macias onde me apoiar. Forrei o chão com cobertores, cortei almofadas e tirei a espuma. O sofá manchado de tinta azul. Recortei a mancha e colei o retalho no vidro. O telefone tocou de novo: Magda, Magda, olhe pela janela. Não olhei. A luz da casa ao lado sempre acesa. Eu procurando o escuro e a luz lá. Tentei atirar alguns caroços de frutas, que caíam na minha frente antes de alcançar a grade. Na rua, alguém mencionava um molho de chaves perdido, o eco chegando aos meus ouvidos e me lembrando das gárgulas. Duras. De pedra. O concreto da pista. Sem olhos, sem pele. A mesa, os computadores, os telefones e o emaranhado de fios. Não pensei em nada disso ao longo dos nove dias. Mas foi nesse período que passei a ouvir melhor, a ouvir coisas que não ouvia antes. Da parede saía um barulho contínuo de água. Para onde corria a água, a quem se destinava a água. Algo despencou da janela do andar de cima, não lembro se um gato ou pedaços de pão. No táxi a caminho do hospital ouvimos uma música. Havia túneis e todos nós erramos o caminho. Ainda estou deitada sobre os cobertores e sobre a espuma esfacelada. Não posso ir ao hospital. Nunca peguei um táxi para ir ao hospital. Foi o gato que despencou da janela do andar de cima, tenho certeza. Meu olho direito começa a inflamar. Magda, Magda. Pela janela. O alarme dispara.

7 de julho de 2014

Primeira tentativa de refazer um percurso aleatório

Atravessamos a passarela no centro velho da cidade. É domingo e caminhamos por vários minutos sem ver mais ninguém. Atravessamos a passarela para chegar ao parque, mas desistimos antes. Em vez disso, entramos no trem com certa pressa. É meio-dia e os outros passageiros sentem fome. Atravessamos a passarela para desviar dos automóveis. Lá embaixo, dois carros prateados disputam a mesma vaga de estacionamento. Com algum tédio, você pergunta o endereço de outro parque, de outra praça, de outro monumento. Vamos de trem. Você se lembra do nome de um mausoléu famoso e ameaça descer na próxima estação, mas desiste antes. Atravessamos a passarela para chegar ao trem. A voz da cabine soa como nos alto-falantes dos aeroportos. Embarque, desembarque. É meio-dia e os outros passageiros sentem o frio na barriga. Atravessamos a passarela para chegar à escada rolante. Emergimos no lado ímpar da avenida, onde nos entregam um panfleto sobre aulas de tai chi chuan. Embarque, desembarque. Você faz ponderações sobre a arquitetura neoclássica. Atravessamos a passarela para driblar o semáforo. Na esquina adiante, dois homens ameaçam se beijar, mas desistem antes. Você se apoia na pilastra enquanto eu sinto fome. É meio-dia. Vamos de trem.

3 de julho de 2014

5

Ainda no chão da sala. Encosto a cabeça no rodapé e observo a mancha. Escura, desorientada, ela se espalha pelo canto onde uma bolha de mofo faz a tinta estufar. Desenho no ar o desenho da mancha. Lembra um gárgula, uma máscara, um pedregulho. Só descobri a mancha depois de arrastar os móveis para o centro do cômodo, porque tinha que percorrer o perímetro da casa com o ouvido rente à parede. Nos primeiros dias foi apenas para ter certeza. Depois passei a rabiscar linhas e setas sobre a tinta, mapeando o trajeto, o comportamento, os desvios modulares e as bifurcações. Tenho certeza de que um padrão começa no exato ponto onde está a mancha, a mancha como indicativo da represa. Mais que isso é difícil. Fiz de tudo para entender, para enquadrar os acontecimentos numa lógica razoável e assim perder o medo. Matemática, física, mecânica dos fluidos. Esquemas, cálculos, fórmulas universais. Setecentas folhas na impressão de postulados e teoremas. O teorema de Gödel sobre a incompletude. E só o que sei até agora é do rato dentro do cano dentro do tijolo dentro da parede. A água está descendo, posso ouvi-la. Sobe para 64 o número de mortos em naufrágio.

1 de julho de 2014

2

Quando deixei a torre foi como irromper no meio do oceano pela brecha de uma escotilha, onde sair era também fazer a água entrar, correndo o risco de ser arrastada por ela. Na torre a inundação era total, em todas as direções, semelhante a uma avalanche que produz fogo e fumaça ao desabar. Depois de sair, não lembro se degrau por degrau ou de um único salto, deparei com o pátio subitamente pequeno e mal planejado. O concreto da pista em vias de derreter. Havia labaredas, sirenes, corpos sem vida. O alarme do computador soava misturado a uma voz mecânica que repetia comandos a ninguém. Dois homens de capuz passaram e o rastro da fuligem ergueu uma tempestade, alterando drasticamente a paisagem. Metais se contorciam dentro das chamas. E o som da estática se fundia às sirenes e à água. O chiado do rádio sem resposta. Uma fileira de sacos plásticos pretos e eu desejando que me levassem também. Me coloquem ali, me incluam na contagem.

30 de junho de 2014

N-561


Tilintar de louça, aspirador de pó. Um bebê chora alto, grita, esfola a garganta nova em folha enquanto a mãe chacoalha o embrulho no colo, provocando sensação de abalo sísmico. O apartamento no terceiro andar começa a ceder. Chega até aqui o cheiro de cigarro e amaciante da sacada onde alguém estende a roupa branca depois de onze dias de chuva. Um carro amarelo surge na esquina e para em frente ao terreno baldio. No terceiro andar, o homem aparece à caça do sinal do telefone. Lá dentro, drinks de frutas e canapés. Um casal de promotores decide o futuro do terreno baldio onde o carro amarelo amassa a vegetação. A rua continua morro acima, alternando pavimentos de asfalto, lajota e pedras. Vai se estreitando até virar uma trilha bifurcada. De um lado, a casa da bruxa; de outro, o pote de manteiga boiando nas primeiras ondas. Fim da linha, diz o motorista e um braço fica preso na porta. O suco escorre da mochila da garota de uniforme e tênis ortopédico. No terreno baldio, algumas crianças competem pelo melhor graveto enquanto a professora enumera acidentes geográficos.

27 de junho de 2014

1

Seis e quarenta e três da manhã. Perdi a noite em uma atividade inútil: apertar todos os parafusos da casa, um por um. Prateleiras, armários, ganchos, gavetas, interruptores, quadros, dobradiças, hastes de alumínio sem finalidade aparente. Tudo em que foi possível dar mais algumas voltas, enterrando ao máximo a pequena espiral no concreto ou na madeira. Tesouras, latas de lixo, uma coleção de óculos, maçanetas, abridores de garrafa. Sem isso não conseguiria dormir. O rangido do metal frouxo açoitando o sono. A casa equilibrada sobre a última palafita. Apertei tudo, tudo, até o som seco sumir. Agora ficou o barulho da água dentro da parede, a água de sempre. A água como um rato habitando os escombros por trás do reboco, correndo daqui pra lá sobre as bordas do anfitrião numa forma ainda não catalogada de comensalismo. Nesse meio-tempo amanheceu. A luz que atravessa o papelão é a mesma luz que ontem se parecia com a lanterna da torre, indelével e de vasto alcance, mas só. Nenhum motor de carro ou tilintar de talheres. Nenhuma explosão. Além da água, apenas o assobio de um homem que sopra e no sopro transcreve um estranho relato sobre mulheres em vestidos de gala. A água, o assobio e no fundo de ambos o helicóptero que pousa no estacionamento. O exército. O ponto vermelho no canto da tela lembrando o ponto vermelho desaparecendo de outra tela. Chegam notícias para certificar o curso de novas tragédias, aqui e ali se abatendo sobre países de localização incerta. Mais de 16 corpos são resgatados após naufrágio. Serviu pra nada, ainda não durmo.

25 de junho de 2014

Fecho um olho enquanto
Testo o foco
E a nitidez do outro
Orangotango, diz o cartaz
Ligue agora, me ligue
A persiana bate com o vento e produz
Um som que acorda ou faz dormir.

-

Adoro e evito a ideia de ser
Sua namoradinha
Despreocupada, viro as costas
E me derreto
Com fotografias.

-

Todo o mistério reside
Num tipo de jogo de volta ao passado
Como flashes de um filme não-linear
Onde a casa é também o supermercado
E a sala de estar, uma espécie de templo
Fantasmagórico
Sem que se possa notar a diferença
Entre o verbo e sua lembrança.

23 de junho de 2014

viagem por terra

Estou em uma praia escura e de areia grossa, onde ninguém jamais pagou para estar. Fecho os olhos e tento seguir. Faço de conta que o chão arenoso é um pântano abissal onde pés e pernas lentamente afundam. Respingos, insetos noturnos, galhos que despencam, a respiração dos animais aquáticos no fundo do tanque. A lama se une ao cascalho, formando uma liga pegajosa e cortante. Caranguejos repousam com as garras em riste. Impossível adivinhar o passo. Sem ver, as mãos estiradas à frente do corpo num gesto automático de proteção, procuro o centro do redemoinho como quem se compraz da posição de cabra-cega. Tateio, tateio. Mais um passo. E outro. Uma corrente gelada engole o corpo da cintura para baixo e penso nas criaturas de sangue frio. Perto daqui alguém dorme. Dois outros conversam na varanda e um terceiro procura pela caixa de bombons. “Só mais um”, implora com voz de criança manhosa. E desaba sobre o mesmo lodo de onde meus dedos ameaçam desenterrar uma enguia. Lembro de quando passamos a primeira noite do ano sobre uma lona. Ao mesmo tempo, na lagoa, um homem velho enfileirava as canoas para refazer a pintura. Armadas em ganchos na parede, as tarrafas recebiam reparos. Dois gatos rondavam a praia à espera dos refugos da pescaria: cabeças de peixe com olhos arregalados, pequeninas piavas que os campistas recolhiam por brincadeira e deixavam morrer ao sol. Amolávamos a faca no concreto. Esquecíamos a existência do telefone. Deitadas sobre a fileira de colchões, adivinhávamos figuras no forro de madeira. Depois do banho, metidas em calças de algodão, acendíamos a espiral de citronela para repelir os pernilongos.
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Saio de casa e dirijo sem parar durante duas horas. Jamais chegarei a tempo de conhecer o sítio onde o grupo se instalou. Um dos rapazes ainda resiste a vestir a camisa e desfila na calçada o corpo bronzeado. A garota de cabelo curto sorri como se posasse para uma fotografia. A outra quer saber as horas, mas jamais chegarei a tempo. Tanto melhor a esterilidade da beira da estrada. A clientela flutuante dos restaurantes de passagem. Esperam por mim no portal que se assemelha a um móbile de berço infantil, com golfinhos dependurados em alusão ao paraíso. Um chocalho para o visitante. Agora é outro litoral. A paisagem mais atulhada e próxima não guarda o mesmo ponto de vista. Faltam rochas de onde saltar para o mergulho. Cessaram os fogos de artifício, assim como o presságio de uma embarcação amiga. Só ficou o lodo habitado por espécies remotas. Dou mais um passo e sinto a fisgada.