30 de junho de 2014

N-561


Tilintar de louça, aspirador de pó. Um bebê chora alto, grita, esfola a garganta nova em folha enquanto a mãe chacoalha o embrulho no colo, provocando sensação de abalo sísmico. O apartamento no terceiro andar começa a ceder. Chega até aqui o cheiro de cigarro e amaciante da sacada onde alguém estende a roupa branca depois de onze dias de chuva. Um carro amarelo surge na esquina e para em frente ao terreno baldio. No terceiro andar, o homem aparece à caça do sinal do telefone. Lá dentro, drinks de frutas e canapés. Um casal de promotores decide o futuro do terreno baldio onde o carro amarelo amassa a vegetação. A rua continua morro acima, alternando pavimentos de asfalto, lajota e pedras. Vai se estreitando até virar uma trilha bifurcada. De um lado, a casa da bruxa; de outro, o pote de manteiga boiando nas primeiras ondas. Fim da linha, diz o motorista e um braço fica preso na porta. O suco escorre da mochila da garota de uniforme e tênis ortopédico. No terreno baldio, algumas crianças competem pelo melhor graveto enquanto a professora enumera acidentes geográficos.

27 de junho de 2014

1

Seis e quarenta e três da manhã. Perdi a noite em uma atividade inútil: apertar todos os parafusos da casa, um por um. Prateleiras, armários, ganchos, gavetas, interruptores, quadros, dobradiças, hastes de alumínio sem finalidade aparente. Tudo em que foi possível dar mais algumas voltas, enterrando ao máximo a pequena espiral no concreto ou na madeira. Tesouras, latas de lixo, uma coleção de óculos, maçanetas, abridores de garrafa. Sem isso não conseguiria dormir. O rangido do metal frouxo açoitando o sono. A casa equilibrada sobre a última palafita. Apertei tudo, tudo, até o som seco sumir. Agora ficou o barulho da água dentro da parede, a água de sempre. A água como um rato habitando os escombros por trás do reboco, correndo daqui pra lá sobre as bordas do anfitrião numa forma ainda não catalogada de comensalismo. Nesse meio-tempo amanheceu. A luz que atravessa o papelão é a mesma luz que ontem se parecia com a lanterna da torre, indelével e de vasto alcance, mas só. Nenhum motor de carro ou tilintar de talheres. Nenhuma explosão. Além da água, apenas o assobio de um homem que sopra e no sopro transcreve um estranho relato sobre mulheres em vestidos de gala. A água, o assobio e no fundo de ambos o helicóptero que pousa no estacionamento. O exército. O ponto vermelho no canto da tela lembrando o ponto vermelho desaparecendo de outra tela. Chegam notícias para certificar o curso de novas tragédias, aqui e ali se abatendo sobre países de localização incerta. Mais de 16 corpos são resgatados após naufrágio. Serviu pra nada, ainda não durmo.

25 de junho de 2014

Fecho um olho enquanto
Testo o foco
E a nitidez do outro
Orangotango, diz o cartaz
Ligue agora, me ligue
A persiana bate com o vento e produz
Um som que acorda ou faz dormir.

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Adoro e evito a ideia de ser
Sua namoradinha
Despreocupada, viro as costas
E me derreto
Com fotografias.

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Todo o mistério reside
Num tipo de jogo de volta ao passado
Como flashes de um filme não-linear
Onde a casa é também o supermercado
E a sala de estar, uma espécie de templo
Fantasmagórico
Sem que se possa notar a diferença
Entre o verbo e sua lembrança.

23 de junho de 2014

viagem por terra

Estou em uma praia escura e de areia grossa, onde ninguém jamais pagou para estar. Fecho os olhos e tento seguir. Faço de conta que o chão arenoso é um pântano abissal onde pés e pernas lentamente afundam. Respingos, insetos noturnos, galhos que despencam, a respiração dos animais aquáticos no fundo do tanque. A lama se une ao cascalho, formando uma liga pegajosa e cortante. Caranguejos repousam com as garras em riste. Impossível adivinhar o passo. Sem ver, as mãos estiradas à frente do corpo num gesto automático de proteção, procuro o centro do redemoinho como quem se compraz da posição de cabra-cega. Tateio, tateio. Mais um passo. E outro. Uma corrente gelada engole o corpo da cintura para baixo e penso nas criaturas de sangue frio. Perto daqui alguém dorme. Dois outros conversam na varanda e um terceiro procura pela caixa de bombons. “Só mais um”, implora com voz de criança manhosa. E desaba sobre o mesmo lodo de onde meus dedos ameaçam desenterrar uma enguia. Lembro de quando passamos a primeira noite do ano sobre uma lona. Ao mesmo tempo, na lagoa, um homem velho enfileirava as canoas para refazer a pintura. Armadas em ganchos na parede, as tarrafas recebiam reparos. Dois gatos rondavam a praia à espera dos refugos da pescaria: cabeças de peixe com olhos arregalados, pequeninas piavas que os campistas recolhiam por brincadeira e deixavam morrer ao sol. Amolávamos a faca no concreto. Esquecíamos a existência do telefone. Deitadas sobre a fileira de colchões, adivinhávamos figuras no forro de madeira. Depois do banho, metidas em calças de algodão, acendíamos a espiral de citronela para repelir os pernilongos.
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Saio de casa e dirijo sem parar durante duas horas. Jamais chegarei a tempo de conhecer o sítio onde o grupo se instalou. Um dos rapazes ainda resiste a vestir a camisa e desfila na calçada o corpo bronzeado. A garota de cabelo curto sorri como se posasse para uma fotografia. A outra quer saber as horas, mas jamais chegarei a tempo. Tanto melhor a esterilidade da beira da estrada. A clientela flutuante dos restaurantes de passagem. Esperam por mim no portal que se assemelha a um móbile de berço infantil, com golfinhos dependurados em alusão ao paraíso. Um chocalho para o visitante. Agora é outro litoral. A paisagem mais atulhada e próxima não guarda o mesmo ponto de vista. Faltam rochas de onde saltar para o mergulho. Cessaram os fogos de artifício, assim como o presságio de uma embarcação amiga. Só ficou o lodo habitado por espécies remotas. Dou mais um passo e sinto a fisgada.