28 de janeiro de 2016

memória-satélite


aos poucos a curva desaparece. já não é mais o lugar onde estacionamos o carro para trocar o pneu. o pneu furado em outra rua, em outro bairro. já não é mais o lugar onde a noite e o incidente pareciam criar um laço perpétuo. algo daquela cena se desprende e viaja a outra parte, flutua sobre a cidade em busca de novo endereço, até se acomodar no exato ponto onde agora estaciono o carro à luz do dia. então é aqui que estacamos. é desta pequena altura, de onde mal se pode formar uma imagem coesa do metro seguinte, é deste ângulo que vamos prosseguir. subo mais alguns lances, o suficiente para imaginar a vista aérea de um pequeno lago de carpas. exatos 90 graus. o olhar incide sobre os peixes, ligeiramente deslocados pela refração da luz na água. não demora para que o pequeno tanque se reduza ao tamanho de uma gota. são várias gotas derramadas em um trecho de cinco ou dez quilômetros. a escala do mapa se dilata a olho nu. subimos mais. agora a precária geometria da paisagem se assemelha à fórmula de um gigantesco composto químico. átomos de elementos radioativos se conectam por vias de mão dupla onde automóveis desviam de pequenas crateras, pessoas maldizem o trânsito, bicicletas pedem passagem. subimos. daqui é possível divisar apenas duas cores. a profusão desordenada de detalhes ficou para trás. a curva desaparece, enquanto uma segunda inclinação se desenha no horizonte. a borda do planeta. mais alto, onde tudo se apaga. a estratosfera.

17 de janeiro de 2016

reações adversas



desta vez a água não desce. existe o ruído seco das portas batendo. os molhos de chaves. os saltos que arremetem. os cascos. as marteladas que prendem. as prateleiras que desabam. faz mais calor. de novo a temperatura do ar é outra na pele. cai a primeira nevasca do ano. 32. 27. os automóveis param. não há motivo pra sair. um vendaval varre os ossos de dentro pra fora, nenhuma outra imagem. mas o barulho é idêntico ao da brasa. os dentes estalam e soltam faíscas. nada vence o gelo que brota nas extremidades. quebrar ou derreter. os instrumentos repousam sobre a mesa corroídos pelo protocolo. sinais difusos. nenhuma forma de combate. agora os deuses respiram. era isso que falavam sobre as divindades. era o ar. respira fundo. abre a mão. estamos com pressa. o intervalo entre uma dúvida e outra é cada vez mais largo. é do tamanho da noite, de mil noites. ninguém pra chamar. os números paralisados. 217. 5. 39. 14. última atualização. uma brisa quase imaginária percorre o guardanapo de papel. o movimento arrasta consigo uma tonelada de preocupações. prendo o ar. mas não era aqui que estávamos investigando. é mais pra baixo. tem alguma coisa, é verdade. os números não mentem. 182. 11 mil. 6 mil. faz de conta que não tem remédio. aí está. agora diz o que fazer. olha no espelho. o que se vê: 258. 6. 85. 38 mil. 621. 2.

8 de janeiro de 2016

estática


então foi por isso que vendemos a casa, o balanço, as máquinas de derreter chocolate. vendemos a casa às pressas e nos dividimos em dois quartos escuros e úmidos e abafados em bairros opostos. dois quartos para dois espiões cujos disfarces acabam de ruir. cada um por si. foi por isso que jogamos fora a filmagem do último aniversário, o avião cortando o céu em zoom, a mão tremendo mais que a flor de hibisco. eu caí descendo a rampa, porque era preciso correr, e minha sandália arrebentou. no fundo da filmagem dá para ouvir o barulho do meu corpo desabando enquanto o avião deixa o quadro. jogamos tudo fora, foi por isso. o carro estava ligado sem ninguém dentro, como se nos esperasse para a fuga. e nos esperava. corremos para dentro, a fita na mão, a filmagem, a prova cabal da separação dos nossos bens. no console do carro havia um par de balas 7 belo amolecidas pelo calor. o volante sem trava. abrimos o teto solar. nossas malas de couro marrom fazendo volume por cima do banco de trás, dois retirantes sem mapa, as janelas cobertas com panos que projetavam um arremedo de sombra. então foi por isso. vendemos a casa e depois vendemos também o carro. vendemos o jogo de cama azul claro. vendemos o violão e os tênis de corrida. fiquei com parte da louça. estava lá na filmagem. a piscina de plástico. a mangueira. os carimbos e as almofadas de tinta. o motor fervendo. no quarto não cabia quase nada e era muito quente. nos livramos de tudo. chegamos ao fim. o fim que levou a fita.