27 de junho de 2016

história da gravidade n.5


ainda é possível correr entre as poças que agora formam um gigantesco arquipélago às avessas, o asfalto aceso pelas luzes que se multiplicam nos desníveis onde a chuva acumulou. alguns carros embalados sobem a ladeira sem tomar conhecimento das estreitas porções de terra sobre as quais nos equilibramos em direção à outra margem / servimos o jantar na varanda de casa e, mesmo durante a noite, eu usava óculos escuros. os lábios sujos de molho vermelho. o copo de cristal ainda inteiro sobre a mesa. a roupa que eu mesma havia escolhido. foi nesse dia que derramei água pela primeira vez / cortamos o ar, desviando do oceano intermitente como um exercício a mais. os pulmões tentando dar conta daquilo que dispara / entramos pela porta dos fundos e ali mesmo tiramos os sapatos e as roupas encharcadas, incapazes de discernir se o corpo ficava mais gelado com elas ou sem. na cozinha acendemos as quatro bocas do fogão. eu olhava fixamente para as chamas azuis até que elas perdiam o foco e se assemelhavam a eclipses de astros luminosos / paramos sob a marquise de um supermercado que havia falido, mas na fachada ainda restavam os cartazes com as derradeiras ofertas: açúcar refinado pacote 1kg. ovos vermelhos a dúzia. cera para lustrar superfícies / saltamos sobre o último lago, atordoados por aquilo que dispara sem soar alarme. ainda é possível correr. o assombro é do tamanho da cena à nossa frente. como assistir a um parto. como jogar comida fora. como beber aguardente.

11 de abril de 2016

História da gravidade n.4



de novo a cratera nos olha, agora ofuscada pela fumaça que a circunda sem tocar as margens, semelhante a uma ilha de magma azul. faço de conta que posso caminhar sobre esta fumaça, sobre esta ponte movediça, tocando a névoa com a ponta de um dos pés até que o vapor acaba por ceder à densidade. volto a me sentar sobre a pedra, em frente a um horizonte mal delimitado em razão da sombra que recobre tanto terra quanto céu, fundidos por trás da película de água. foi nesta pedra que, há tanto tempo, nos reunimos para a refeição que coroou a escalada. era desconfortável caminhar sem saber para onde nem por quanto tempo. a trilha nos guiava de maneira duvidosa por trechos onde tudo o que restava era um fiozinho de terra seca entre dois oceanos. não por acaso, é agora que retomo a lembrança do dia em que fomos até a ponta da última praia, em direção ao sul, e voltei do passeio com a viva imagem de bruxas, cavalos com crinas trançadas e casebres de madeira frouxa.  o vulto que, no cintilar das ondas, ganhava ares sobrenaturais. fizemos uma fogueira em homenagem à noite, ainda que fosse dia. o balanço indo e vindo sem ninguém. o cálculo mal feito, o degrau jamais visto. como agrupar coleções de elementos. o lapso em seu nome. vestígios da máquina abissal: o cubo mágico.

4 de abril de 2016

História da gravidade n.3



agora as imagens passam como canais de televisão: nenhuma delas se detém por mais de um segundo, a dúvida nos impelindo para a próxima e assim por diante. uma imagem consistente por vir, uma mais adequada aos propósitos da noite. a bicicleta no alto do morro. o lustre quebrado pela bola de futebol. a sandália de velcro arrebentada no chão da garagem. nada é suficiente para resumir o ponto necessário ao trabalho de hoje. o braço engessado. não. nenhum traço suficiente. talvez seja preciso desatar o nó que ainda nos prende à cena de ontem. o corpo recém-desperto na varanda de tijolos à vista. o ar desoladamente parado e, assim, tão favorável a qualquer movimento. enquanto entrávamos no ônibus para mudar de cidade. durou apenas um segundo, no máximo dois. por isso agora todas as imagens se projetam sob o mesmo regime, encadeadas por um signo que tenta repetir o impacto em cada milésimo de memória. a figura inerte aos modos de uma estátua que, em sua existência inabalável, exalta a potência do universo. fizemos de conta que era possível retomar o cotidiano, as fichas em branco e as canetas mordidas. o papel consumido como hóstia. mas aquele único segundo nos aflige desde então. fixado no fundo dos olhos como o resumo nuclear da nossa fantasia, o trecho de um sonho mal esquecido e mal lembrado. ainda que abandonemos a topologia dos acontecimentos para tratar apenas dos quadros recortados e pobres, dos gráficos rudimentares que associamos a breves comoções. como o gesto de oferecer a maca ao doente. como catalisar traumas e choques em porções de palavras.

29 de março de 2016

História da gravidade n.2



depois da primeira queda, as articulações adormecem e tentam dobrar o corpo novamente na direção do solo, vencidas pela convicção de que cair é a consequência natural de estar de pé. como na vez em que um cão desgarrado nos perseguiu pelo terreno estreito, da largura de um corredor, até tropeçarmos por conta própria no emaranhado de pernas. a fratura nos ossos fazia o teto girar, todas as cabeças debruçadas sobre o tórax consumido pelo choque, na mistura de sangue com terra e pele ralada. o medo de ficar marcada misturado à vontade de ficar marcada. a preocupação de que tirassem a roupa para avaliar o estrago. não posso mais andar. vamos ver o que tem aqui. o que não tem. chovia como só chove nos dias complicados e lembro de acordar no banco de trás do carro, em plena viagem, com roupas emprestadas de alguém muito menor. tentava contar os postes que passavam pela janela, a luz amarela borrando o restante da noite que cruzávamos entre plantões, o limpador do para-brisa indo e voltando, embalando aquele estado entre o sono e o entusiasmo contido pela aventura que era ter pressa, dormir tarde, pedir socorro. depois disso tivemos que colocar o colchão sobre o assoalho do quarto, porque de uma hora para a outra a cama havia se tornado alta demais. não bastavam as barricadas, as pequenas grades de madeira que mandávamos fazer sob medida. passei anos dormindo no chão e pela manhã voltávamos a arrumar tudo sobre o estrado, terminando com a colcha e algumas almofadas, para dar a impressão de que o sono havia ocorrido em seu lugar devido.

27 de março de 2016

História da gravidade n.1



o joelho esfolado sob a água corrente fazia tudo em volta arder como brasa, sem ponto de partida ou fronteira última, irradiando a fatalidade de maneira que nada mais havia além da cena duplicada no espelho, o terror e sua miragem, o círculo atravessando sólidos, forçando caminho, corroendo o centro dos móveis e dos tecidos que revestiam os móveis como se o ar tivesse de repente se tornado ácido, faca, bala. nos buracos surgia o alívio da penitência, o estranho contorno que sobrevém à dor autoinfligida, o sangue lavado ressurgindo a todo instante nos poros abertos como um ralo que transborda. formava ali o registro, a naturalidade caótica do que ameaça a consistência do corpo, aquilo que aniquila o prumo imaginário para o qual desejamos voltar instantaneamente num gesto que se assemelha à inércia de uma placa, de uma porta. gritava sem articular palavra, sem oferecer ao universo um esboço de sentido, acreditando portanto em adivinhações, a ferida e seu suporte evaporando ante o fervor da fé transformadora. gritava de dor e alguém gritava dentro da imagem do espelho, me forçando a ouvir tudo com mais clareza, em dobro, em um modo de sobrevivência que dependia da ameaça para funcionar. cada pedaço do papel de parede se descolando, cada mancha no carpete, cada foco de ferrugem, tudo reverberava na pele do joelho e na imagem multiplicada que só eu ainda via. indo e vindo sem lógica ou previsão matemática, desprovido de qualquer anúncio, orbitava entre nós o pêndulo desgovernado que a cada movimento para longe arrastava consigo a promessa da tranquilidade. o joelho ardia, a água arrastava.

7 de março de 2016

arrebentação



de longe parece que a onda deita em um movimento suave, dominado pelo excesso de cortesia. a onda se agrava e depois amolece, antes de arrebentar sobre a praia. mas a água é maior que a terra. a água empurra e assalta, serena violenta, para então virar paisagem. de longe parece que o pedaço de plástico é um peixe. você vai nadando até perceber que o peixe não se move, e fica sem fôlego para voltar. você boia ao lado do plástico, esticando os braços para agarrar qualquer coisa. mas a água é maior que o peixe. a água chicoteia e dilacera, se torna pedra, para então recuar. de longe parece que o barco maior vai engolir o menor. você senta para contemplar a catástrofe e queima a palma da mão na areia escaldante. o segredo é cavar mais fundo e tentar agarrar qualquer coisa. a mulher da barraca procura um número de telefone na lista amarela, cada folhinha tentando voar para fora do livro. estamos em 1992. meu dente está sujo de batom vermelho. a mulher grita agora, ou grita em outra cena que se mistura com a de agora. mordo um copo de cristal. de longe parece que a piscina está cheia. você traz um pote de xampu e começa a lavar o cabelo, mas a espuma faz o seu olho arder. ficamos cegos por alguns segundos e esticamos os braços para agarrar qualquer coisa, boiando na espuma da onda e do xampu. a mulher oferece uma toalha bordada com as iniciais G.R. e mergulhamos nossas cabeças no tanque, tampando o nariz com uma das mãos. os olhos vermelhos, mas abertos, os olhos muito aguados. damos a volta na casa e depois na quadra. damos a volta esticando os braços e tentando agarrar qualquer coisa no caminho. a mulher usa um rodo para drenar o assoalho. de longe parece que a água não machuca.



foto: tom beazley / tel aviv, 1940

28 de janeiro de 2016

memória-satélite


aos poucos a curva desaparece. já não é mais o lugar onde estacionamos o carro para trocar o pneu. o pneu furado em outra rua, em outro bairro. já não é mais o lugar onde a noite e o incidente pareciam criar um laço perpétuo. algo daquela cena se desprende e viaja a outra parte, flutua sobre a cidade em busca de novo endereço, até se acomodar no exato ponto onde agora estaciono o carro à luz do dia. então é aqui que estacamos. é desta pequena altura, de onde mal se pode formar uma imagem coesa do metro seguinte, é deste ângulo que vamos prosseguir. subo mais alguns lances, o suficiente para imaginar a vista aérea de um pequeno lago de carpas. exatos 90 graus. o olhar incide sobre os peixes, ligeiramente deslocados pela refração da luz na água. não demora para que o pequeno tanque se reduza ao tamanho de uma gota. são várias gotas derramadas em um trecho de cinco ou dez quilômetros. a escala do mapa se dilata a olho nu. subimos mais. agora a precária geometria da paisagem se assemelha à fórmula de um gigantesco composto químico. átomos de elementos radioativos se conectam por vias de mão dupla onde automóveis desviam de pequenas crateras, pessoas maldizem o trânsito, bicicletas pedem passagem. subimos. daqui é possível divisar apenas duas cores. a profusão desordenada de detalhes ficou para trás. a curva desaparece, enquanto uma segunda inclinação se desenha no horizonte. a borda do planeta. mais alto, onde tudo se apaga. a estratosfera.

17 de janeiro de 2016

reações adversas



desta vez a água não desce. existe o ruído seco das portas batendo. os molhos de chaves. os saltos que arremetem. os cascos. as marteladas que prendem. as prateleiras que desabam. faz mais calor. de novo a temperatura do ar é outra na pele. cai a primeira nevasca do ano. 32. 27. os automóveis param. não há motivo pra sair. um vendaval varre os ossos de dentro pra fora, nenhuma outra imagem. mas o barulho é idêntico ao da brasa. os dentes estalam e soltam faíscas. nada vence o gelo que brota nas extremidades. quebrar ou derreter. os instrumentos repousam sobre a mesa corroídos pelo protocolo. sinais difusos. nenhuma forma de combate. agora os deuses respiram. era isso que falavam sobre as divindades. era o ar. respira fundo. abre a mão. estamos com pressa. o intervalo entre uma dúvida e outra é cada vez mais largo. é do tamanho da noite, de mil noites. ninguém pra chamar. os números paralisados. 217. 5. 39. 14. última atualização. uma brisa quase imaginária percorre o guardanapo de papel. o movimento arrasta consigo uma tonelada de preocupações. prendo o ar. mas não era aqui que estávamos investigando. é mais pra baixo. tem alguma coisa, é verdade. os números não mentem. 182. 11 mil. 6 mil. faz de conta que não tem remédio. aí está. agora diz o que fazer. olha no espelho. o que se vê: 258. 6. 85. 38 mil. 621. 2.

8 de janeiro de 2016

estática


então foi por isso que vendemos a casa, o balanço, as máquinas de derreter chocolate. vendemos a casa às pressas e nos dividimos em dois quartos escuros e úmidos e abafados em bairros opostos. dois quartos para dois espiões cujos disfarces acabam de ruir. cada um por si. foi por isso que jogamos fora a filmagem do último aniversário, o avião cortando o céu em zoom, a mão tremendo mais que a flor de hibisco. eu caí descendo a rampa, porque era preciso correr, e minha sandália arrebentou. no fundo da filmagem dá para ouvir o barulho do meu corpo desabando enquanto o avião deixa o quadro. jogamos tudo fora, foi por isso. o carro estava ligado sem ninguém dentro, como se nos esperasse para a fuga. e nos esperava. corremos para dentro, a fita na mão, a filmagem, a prova cabal da separação dos nossos bens. no console do carro havia um par de balas 7 belo amolecidas pelo calor. o volante sem trava. abrimos o teto solar. nossas malas de couro marrom fazendo volume por cima do banco de trás, dois retirantes sem mapa, as janelas cobertas com panos que projetavam um arremedo de sombra. então foi por isso. vendemos a casa e depois vendemos também o carro. vendemos o jogo de cama azul claro. vendemos o violão e os tênis de corrida. fiquei com parte da louça. estava lá na filmagem. a piscina de plástico. a mangueira. os carimbos e as almofadas de tinta. o motor fervendo. no quarto não cabia quase nada e era muito quente. nos livramos de tudo. chegamos ao fim. o fim que levou a fita.