29 de março de 2016

História da gravidade n.2



depois da primeira queda, as articulações adormecem e tentam dobrar o corpo novamente na direção do solo, vencidas pela convicção de que cair é a consequência natural de estar de pé. como na vez em que um cão desgarrado nos perseguiu pelo terreno estreito, da largura de um corredor, até tropeçarmos por conta própria no emaranhado de pernas. a fratura nos ossos fazia o teto girar, todas as cabeças debruçadas sobre o tórax consumido pelo choque, na mistura de sangue com terra e pele ralada. o medo de ficar marcada misturado à vontade de ficar marcada. a preocupação de que tirassem a roupa para avaliar o estrago. não posso mais andar. vamos ver o que tem aqui. o que não tem. chovia como só chove nos dias complicados e lembro de acordar no banco de trás do carro, em plena viagem, com roupas emprestadas de alguém muito menor. tentava contar os postes que passavam pela janela, a luz amarela borrando o restante da noite que cruzávamos entre plantões, o limpador do para-brisa indo e voltando, embalando aquele estado entre o sono e o entusiasmo contido pela aventura que era ter pressa, dormir tarde, pedir socorro. depois disso tivemos que colocar o colchão sobre o assoalho do quarto, porque de uma hora para a outra a cama havia se tornado alta demais. não bastavam as barricadas, as pequenas grades de madeira que mandávamos fazer sob medida. passei anos dormindo no chão e pela manhã voltávamos a arrumar tudo sobre o estrado, terminando com a colcha e algumas almofadas, para dar a impressão de que o sono havia ocorrido em seu lugar devido.

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