30 de agosto de 2014

Segunda tentativa de refazer um percurso aleatório

Eram cinco da manhã quando decidiu voltar para casa. A sala fresca e iluminada, com os restos do banquete ainda sobre a mesa, havia perdido seu prestígio. Desligou os aparelhos, apagou as luzes. Àquela hora a cidade estava tranquila, mas alguns carros ainda cortavam o ar atrás de festas e lojas de conveniência. Viu quando o guarda noturno ergueu o braço por cima do balcão para acionar a cancela. Acendeu os faróis, travou as portas e deslizou do acostamento para a pista da rodovia. Quinta marcha, oitenta quilômetros por hora e a vontade de que, por mágica, os vinte minutos do trajeto se reduzissem a dois. A temperatura no lado de fora era oposta à que fazia no interior do carro, onde já estava frio demais. Sentiu a garganta arranhar e abriu uma fresta na janela. O bafo quente da noite de verão imediatamente tomou conta do veículo, tornando a viagem menos confortável. Um carro preto passou pela esquerda e dois homens fizeram sinal, mas a película opaca a mantinha incógnita na escuridão que sobrevinha entre dois postes de luz. Acelerou mais. Noventa quilômetros por hora. Torceu para que os radares de velocidade ainda estivessem desativados, mas a multa de trânsito parecia um preço pequeno a pagar pela exaustão no final da madrugada. Sóbria, um tanto sonolenta. A música no rádio repetia o refrão: a Terra é selvagem, não temos tempo. Lembrou de uma carona, três dias antes, e de outra, na semana anterior. Duas pessoas que ali estiveram, sentadas a menos de quinze centímetros de distância e, no entanto, não esperava rever nenhuma delas. Era a primeira madrugada do ano. A primeira vez que dirigia, que ouvia a música e que desejava adormecer. Recordou-se por alto de um antigo hábito e tentou imaginar onde estariam os outros naquele instante. Concluiu que a maioria estava na cama, mas nem todos dormiam. Reduziu um pouco a velocidade na curva. Passando pelo cemitério, viu de relance o vigia prostrado na entrada, assegurando a integridade das sepulturas e de seus adornos. Os mausoléus de mármore. A promessa de paz. Um buraco no asfalto fez o carro tremer, exigindo mais atenção. Poucos metros até a avenida. Perto do manguezal, uma garota caminhava sem pressa com a mochila nas costas. Não parecia se dar conta da hora avançada. Perto dali um grupo se aglomerava no ponto do ônibus, esperando para ir ou para voltar. Mais adiante avistou uma pequena massa de automóveis parados em fila. Uma sequência de cones impedia o trânsito naquela direção. Nas primeiras horas, no primeiro dia, desviava do caminho mais curto. Tentava pensar rápido na melhor maneira de retomar o percurso. Uma manobra estratégica, assim precipitada. Virou à esquerda na praça, depois à direita na via paralela. Viu quando uma mulher de vestido branco passou com os sapatos na mão. A rua estava repleta de objetos. De vez em quando os pneus estraçalhavam um deles. Copos, garrafas, rolhas, fitinhas luminosas. Escutou o ruído noturno das latas batendo no caminhão de lixo e sentiu ainda mais sono. Virou à direita no casarão e finalmente atingiu a avenida em um trecho desbloqueado. Dali até chegar em casa, todos os semáforos do caminho estavam verdes.

27 de agosto de 2014

delonix regia

A casa não tinha mesa. Era uma daquelas casas em que os tijolos, o cimento e o reboco consomem todo o orçamento, restando pouco ou nada a oferecer pela mobília. Tentaram disfarçar a parca decoração com ideias acerca do uso do espaço, mas a verdade é que trocariam o discurso por um sofá. O homem tinha o hábito de tratar esse limite como parte de um projeto sempre provisório. Uma vez concluída a primeira construção, passariam a pensar na verdadeira casa - esta, sim, grandiosa. O dobro de andares, piscina, vista para a baía. No topo do morro, perto dos deuses. A garota mais nova se esgueirava pela casa temporária no meio da noite. Descia  a escada em espiral para admirar a planta baixa da mansão. Desenrolava o papel como se este fosse uma espécie de pergaminho milenar que o manuseio indolente poderia extinguir. Percorria com os olhos os corredores, os quartos espaçosos, as salas onde vislumbrava cadeiras douradas, lustres de cristal e até um piano. Enquanto isso, a chuva ameaçava derrubar o muro que os defendia da encosta, e assim o fez por duas vezes no mesmo ano, arrastando grandes quantidades de areia e barro alaranjado para cima do carpete.

17 de agosto de 2014

a clock is a clock is a clock is

Últimos dias de desordem. Mesmo sem ponto de partida, o relógio parece menos assertivo. Hesita na virada do minuto. Sinuca estatística - já que houve momentos de mais e maior dedicação. Agora não. Talvez o tique-taque tenha captado a intimidade e julga agradar com tantas voltas. Uma fumaça invisível engolindo tudo. Uma coleção de pedras brancas. Uma última viagem. Nuvens carregadas e falsos ídolos / ninguém entende a graça do argumento. Às onze e cinquenta e dois, caio na armadilha do segredo, onde pensar equivale a fazer – e fazer mal feito. Chega ao fim a prece rogada na infância, quando os trinta anos remetiam ao infinito.

12 de agosto de 2014

arquivo morto nº 2

recolho os cacos maiores e espero até que venham me questionar sobre o barulho. o estilhaço como estratégia de resgate, após cinco dias sem nenhuma palavra. mas o andar de cima continua silencioso. talvez estejam fora desde ontem, me deixando agora encurralada entre a cortina e o tapete. tento alcançar o jornal para fazer uma ponte, um trilho, mas o movimento o sopra para longe, até chegar ao túnel de onde objetos desaparecem noite após noite. viro de costas. a folhagem não deixa mentir.

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passo a maior parte do dia entre a sala e o corredor dos quartos, esquecendo uma coisa a cada viagem, parando apenas para acender a luz e verificar o telefone no gancho. apesar dos sacos cheios de lixo, a casa tenta reaver a poeira espanada ao longo dos anos. ficam parafusos, pequenos buracos no concreto, marcas de pés e dedos gordurosos, panos encardidos. o assoalho está novo onde os móveis o pouparam do sol. desmonto prateleiras e estantes. separo algumas fotografias. os mortos que não podemos enterrar, então acendemos fogueiras ou os distribuímos em caixas cada vez menores.

(2008)

11 de agosto de 2014

arquivo morto nº 1

nós dois em dois minutos. elevador de emergência, um abismo. você abre a boca - faço companhia. prefiro não sair da cadeira que você comprou para dividir o nosso tempo em duas partes. funciona da seguinte forma: estou sentada procurando fotografias 3x4 da mulher que você deixou na capital federal.

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não consigo me livrar dos objetos que ficaram para trás. um a um persigo automóveis, placas, filmes de guerra. empilho porta-retratos. abro espaço na multidão. você está no encontro disso tudo, que - agora vejo - era só dever de casa. equitação. jantar a dois.

(2008)

10 de agosto de 2014

7

Magda atravessa a cidade sem nenhuma expectativa de ser reconhecida. Apesar de todos saberem sobre a torre, a imagem catatônica replicada mundo afora, apesar disso não esperam encontrá-la na rodoviária ou no semáforo. Por isso não a veem. Magda para no meio da passarela para observar o mar de pessoas e carros, a marcha que transfere tudo da origem para o destino, o moroso pêndulo que mesmo aos domingos oferece obstáculo à percepção do tempo. Permanece incógnita. Magda condena o fluxo e seu sistema de dependência mútua. Tem vontade de sair depressa, cruzar a via a toda velocidade e tomar a primeira saída. Mas mesmo a imagem hipotética se deteriora. Alguém vindo de São Bonifácio faz Magda perder a sincronia dos sinais. Ela para no meio do viaduto, indiferente ao deslocamento irrisório da última hora e meia. Olha para cima. Um helicóptero circunda a região central. Procura fugitivos, homens de capuz e canivete. Magda fecha a janela e o ar abafado lhe lembra da torre. O calor da fogueira colossal invadindo a saleta, derretendo plásticos, sufocando. Ainda no alto do viaduto, Magda olha para o lado e vê a ponte que nasce da avenida. Precisa alcançá-la mas o traçado a leva para longe, exigindo uma manobra irracional em primeira análise. Depois do susto, qualquer escalada, degrau ou parapeito se torna duvidoso. Tudo vai bem na passarela às seis da tarde. De repente Magda manifesta em série todas as doenças do labirinto cujo principal sintoma é a perda de equilíbrio. A mais concreta consequência: Magda não pode se manter de pé. No alto do viaduto, da passarela e da torre, tenta não ter medo. Olha em direção ao céu até localizar um pássaro ou objeto voador.

7 de agosto de 2014

Bloco A

Desisto de encontrar a chave. Tudo que carrego está sobre poucos metros quadrados. Papéis, moedas, cartões arranhados, manteiga de cacau. A chave não aparece e a bolsa do avesso mimetiza a cena do assalto. São três horas da manhã. Nem duas, quando poderia pedir ajuda, nem quatro, quando poderia me conformar. São três. Sentada no último degrau encosto a cabeça na parede de salpico, esquecida para fora sem saber se alguém espia pelo olho mágico. Tão inerte que a lâmpada se apaga. Poderia refazer o caminho por onde vim, varrer o cimento e a grama, mas é pouco provável que encontre a chave. A essa altura alguém a levou para uma coleção particular. Um jarro de vidro com uma centena de chaves e novos desabrigados. Às três horas da manhã, fico onde ninguém fica – no corredor sombrio, ponto de passagem que se abre para o crime no intervalo entre dois lances de escada.

4 de agosto de 2014

o desaparecimento de uma espécie

A dois dias de acabar o ano, devoro arroz às colheradas sem nenhum apetite. Mas é preciso comer, ocupar a boca, esquecido o instinto ancestral que luta para saciar a fome. As tartarugas marinhas sempre voltam ao lugar onde nasceram para enterrar seus ovos. No andar de cima, crianças batem panelas enquanto imploram pelo prato cheio. “Mãe, me dá purê de batata”, repete o menino sem parar e por isso fica de castigo. Também fui forçada a comer macarrão parafuso. A massa pálida sem molho, dando voltas e mais voltas, bamboleando ao toque do garfo. E a bruxa sempre atenta - qualquer silêncio transformado em sugestão de sua presença. Eu, por vingança, bebia os licores de pêssego do minibar e enchia as garrafinhas com água. Muitas tartarugas morrem logo depois de nascer, porque não encontram o oceano. Dois dias e o ano termina. Na boca do estômago, algo estranho se desaloja e tenta escapar. Febre alta, choradeira, vômito, gritaria. Ressurge o fantasma da antiga posição: condenada ao absoluto. Um. Tudo. Terra arrasada. Ser terrível. Morrer desassistida. A luz dos postes simula o reflexo da lua na água e atrai as tartarugas para a morte. Dois dias. Alguém começa uma contagem regressiva não-oficial às três da tarde. Na antiga casa da praia, colávamos cacos de azulejo na parede para formar o desenho de peixes e estrelas do mar. Também era dezembro. Apenas uma em cada cem tartarugas marinhas sobrevive até a idade adulta. Finalmente me decido: sentada sobre a pedra, com os fachos de luz salpicando o céu à meia-noite.

1 de agosto de 2014

Desfigurações secundárias (meditation on violence)


- O que é isso na sua perna? - pergunta a dona da casa com o indicador apontado para as manchas escuras na coxa direita, depois de quatro dias de cautela - vestidos longos, maquiagem e visitas noturnas à cozinha. Logo quando o roxo arrefece e dá lugar ao verde pálido... Puxo a camisola para baixo, num gesto tanto reflexivo quanto ensaiado, sem desviar os olhos da tela do computador. Desconverso:
- Como está o tempo lá fora? Pretendo correr ainda hoje.
A ideia da pergunta é dar à dona da casa a oportunidade de ser útil, coisa que a satisfaz mais que tudo, impedindo-a assim de persistir no assunto anterior. Porém a dona da casa sai do quarto sem recuperar o interrogatório, mas também sem dar resposta. Afinal compreendo: não gosta de perguntas que uma janela aberta pode liquidar. Teria sido mais acertado lhe pedir receitas de remédios caseiros para cólica.
Correr será agradável - assim me parece agora. O corpo furando o ar com velocidade, os pés em movimentos compassados, a música cada vez mais alta nos fones de ouvido. E depois o suor expiatório, o rosto vermelho como o das crianças brincando no inverno, os goles de água.
Ainda no quarto, mesmo sem ninguém por perto, estico novamente o tecido do pijama até os joelhos, na esperança de apagar as manchas nesta operação. Não gosto de ser surpreendida pela imagem. Cinco hematomas cravados na pele, formando a impressão de uma garra ladeada por dois semicírculos, onde o sangue coagulou em uma série de minúsculas bolinhas. Recordar o choque é um exercício de paciência e resignação. O cárcere do dia seguinte, a inquisição de sempre. Ao menos foi um ato de coragem. Ir até lá, colocar as cartas. Mas era só.
Correr já não é um bom plano, portanto. A bermuda subiria mais e mais a cada passada, terminando por descortinar publicamente as marcas na circunferência da perna, tais como as feridas abjetas de um bicho em estado de abandono. É uma leitura difícil de trazer à tona. O rubor da vergonha se confundindo com o da excitação pela corrida. Melhor dormir.
Neste momento o sol tenta se esconder. Deito e trago o lençol até o pescoço, aproveitando a extensão do pano para cobrir a pele inteira de uma vez. No semiescuro do quarto onde a luz do dia incide de maneira ambígua pelas frestas da veneziana, um pouco sufocada pela respiração que bate no tecido e retorna sobre meu rosto, tento imaginar separadamente os milhares de tons que fazem a transição do roxo escuro para o roxo claro e depois para o verde. Em seguida os outros vários que separam o verde musgo do oliva original. Dou nomes a todas as nuances que consigo imaginar, até que sinto as unhas se fincarem com toda a força na coxa direita. Mais nada. Quando acordo, um vigor intenso e repentino me faz saltar da cama.

31.12.2013