1 de agosto de 2014

Desfigurações secundárias (meditation on violence)


- O que é isso na sua perna? - pergunta a dona da casa com o indicador apontado para as manchas escuras na coxa direita, depois de quatro dias de cautela - vestidos longos, maquiagem e visitas noturnas à cozinha. Logo quando o roxo arrefece e dá lugar ao verde pálido... Puxo a camisola para baixo, num gesto tanto reflexivo quanto ensaiado, sem desviar os olhos da tela do computador. Desconverso:
- Como está o tempo lá fora? Pretendo correr ainda hoje.
A ideia da pergunta é dar à dona da casa a oportunidade de ser útil, coisa que a satisfaz mais que tudo, impedindo-a assim de persistir no assunto anterior. Porém a dona da casa sai do quarto sem recuperar o interrogatório, mas também sem dar resposta. Afinal compreendo: não gosta de perguntas que uma janela aberta pode liquidar. Teria sido mais acertado lhe pedir receitas de remédios caseiros para cólica.
Correr será agradável - assim me parece agora. O corpo furando o ar com velocidade, os pés em movimentos compassados, a música cada vez mais alta nos fones de ouvido. E depois o suor expiatório, o rosto vermelho como o das crianças brincando no inverno, os goles de água.
Ainda no quarto, mesmo sem ninguém por perto, estico novamente o tecido do pijama até os joelhos, na esperança de apagar as manchas nesta operação. Não gosto de ser surpreendida pela imagem. Cinco hematomas cravados na pele, formando a impressão de uma garra ladeada por dois semicírculos, onde o sangue coagulou em uma série de minúsculas bolinhas. Recordar o choque é um exercício de paciência e resignação. O cárcere do dia seguinte, a inquisição de sempre. Ao menos foi um ato de coragem. Ir até lá, colocar as cartas. Mas era só.
Correr já não é um bom plano, portanto. A bermuda subiria mais e mais a cada passada, terminando por descortinar publicamente as marcas na circunferência da perna, tais como as feridas abjetas de um bicho em estado de abandono. É uma leitura difícil de trazer à tona. O rubor da vergonha se confundindo com o da excitação pela corrida. Melhor dormir.
Neste momento o sol tenta se esconder. Deito e trago o lençol até o pescoço, aproveitando a extensão do pano para cobrir a pele inteira de uma vez. No semiescuro do quarto onde a luz do dia incide de maneira ambígua pelas frestas da veneziana, um pouco sufocada pela respiração que bate no tecido e retorna sobre meu rosto, tento imaginar separadamente os milhares de tons que fazem a transição do roxo escuro para o roxo claro e depois para o verde. Em seguida os outros vários que separam o verde musgo do oliva original. Dou nomes a todas as nuances que consigo imaginar, até que sinto as unhas se fincarem com toda a força na coxa direita. Mais nada. Quando acordo, um vigor intenso e repentino me faz saltar da cama.

31.12.2013

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