4 de agosto de 2014

o desaparecimento de uma espécie

A dois dias de acabar o ano, devoro arroz às colheradas sem nenhum apetite. Mas é preciso comer, ocupar a boca, esquecido o instinto ancestral que luta para saciar a fome. As tartarugas marinhas sempre voltam ao lugar onde nasceram para enterrar seus ovos. No andar de cima, crianças batem panelas enquanto imploram pelo prato cheio. “Mãe, me dá purê de batata”, repete o menino sem parar e por isso fica de castigo. Também fui forçada a comer macarrão parafuso. A massa pálida sem molho, dando voltas e mais voltas, bamboleando ao toque do garfo. E a bruxa sempre atenta - qualquer silêncio transformado em sugestão de sua presença. Eu, por vingança, bebia os licores de pêssego do minibar e enchia as garrafinhas com água. Muitas tartarugas morrem logo depois de nascer, porque não encontram o oceano. Dois dias e o ano termina. Na boca do estômago, algo estranho se desaloja e tenta escapar. Febre alta, choradeira, vômito, gritaria. Ressurge o fantasma da antiga posição: condenada ao absoluto. Um. Tudo. Terra arrasada. Ser terrível. Morrer desassistida. A luz dos postes simula o reflexo da lua na água e atrai as tartarugas para a morte. Dois dias. Alguém começa uma contagem regressiva não-oficial às três da tarde. Na antiga casa da praia, colávamos cacos de azulejo na parede para formar o desenho de peixes e estrelas do mar. Também era dezembro. Apenas uma em cada cem tartarugas marinhas sobrevive até a idade adulta. Finalmente me decido: sentada sobre a pedra, com os fachos de luz salpicando o céu à meia-noite.

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