3 de novembro de 2015

Novos e abatidos



Depois havia a caça. A perseguição desleal e perturbadora que nos haviam ensinado a cultuar como sinal de nobreza e distinção. Caçávamos nossas feições desajustadas, nossos desvarios burgueses, nossas altercações comezinhas por um punhado de moedas se tanto. A caça era o modo pelo qual sempre retomávamos a convivência pacífica, de outra maneira açoitando a carne alheia, como uma dança em que o único objetivo é chegar ileso à música seguinte. Os mais velhos davam palpites desencontrados, apontando a esmo para lugares onde nada se via além da paisagem inerte. Os traços mais reluzentes eram associados a certa criatura exótica, ligeira e algo mística cuja aparição fugaz era celebrada com euforia na retaguarda do grupo, aonde as informações chegavam deturpadas pela distância. Assim era que todas as noites, com muita paciência e até certa lentidão, como se o menor movimento brusco pudesse desencadear toda sorte de maldições, assim era que tomávamos nossos lugares à mesa, ciosos de nossa estirpe de caçadores, sem outra causa para interpor aos pratos e talheres que não esses jogos de esconder, barganhando pequenas vantagens entre uma garfada e outra daquilo que matamos.

14 de julho de 2015

2: Volo chaos


A imagem da ladeira colossal, íngreme e pedregosa é a mesma imagem da noite de ontem. Tomo impulso e, num desatino, escolho cair. Da torre também se pode ver tudo e também de lá é possível despencar. O desejo vem à tona em qualquer bifurcação: de um lado, a voz monocórdia que jamais será lembrada; de outro, a cena traumática que não poderá ser esquecida. Mesmo ao custo de alguns arranhões, escolhe-se cair. O homem que vendeu sua alma em troca da imortalidade, na ânsia de se sentir vivo novamente acabou condenado a passar a eternidade em uma gaiola. A torre é a prisão onde o bruto ganha contornos suaves. A amplitude do campo, o alcance do sentido que nos torna crentes, mesmo isso acaba por definhar sob o peso dos radares, das ondas do rádio, dos ruídos eletrônicos. Em pouco tempo relegamos toda decisão ao cálculo matemático e atravessamos dezenas de horas na sala escura sem janelas. A próxima chave que se dissipa é o som dos jatos cortando o ar em potência máxima. O estrondo produzido pelo esforço da frenagem. O espetáculo se apaga, assim como o mar desaparece para quem o encontra todos os dias.

4 de julho de 2015

1: Não sei andar de bicicleta


Por isso até hoje o cheiro da vegetação queimada, o cheiro da fumaça dos incêndios deflagrados sem estudo, o cheiro que se repete em qualquer fogueira, o cheiro sufocante para muitos, o cheiro que invade o ar coado de nossas casas. Na garagem que apesar do nome jamais abrigou um veículo sequer, na garagem onde a iluminação por si só bastante débil ainda enfrentava o negrume da fuligem que se abatia sobre as paredes, na garagem onde a densa poeira jogava por terra qualquer claridade que pudesse ser multiplicada pelas lei da óptica, na garagem percorríamos os primeiros metros. Aproveitávamos o declive suave, fruto do precário nivelamento do cimento, para pegar embalo e tirar os pés do chão. A blusa de lã pinicava em contato com a pele conforme a excitação da aventura nos fazia suar. As bochechas guardavam o calor gerado pelos movimentos e pelas gargalhadas. Faltava ar, faltava tempo. Revezávamos as posições entre a brincadeira e o descanso sobre os pacotes cheios de tecido, um ciclo após o outro, uma vez e depois mais uma, mimetizando em nossos corpos a crença no infinito que é tão própria da infância. Por isso a alvenaria mal acabada, a parede erguida na ausência do prumo, o reboco assentado sem capricho ou diligência, as texturas acidentais formadas pelo encontro fortuito do tijolo com a argamassa, por isso tamanha displicência. Cada lata de tinta esquecida na prateleira mais alta. Cada garrafa vazia depositada no armário para um uso posterior que jamais se confirmaria. Cada embalagem de presente passada a ferro. Cada tábua do assoalho rangendo sob nossos passinhos entusiasmados. Por isso a cena geral em que tudo isso aparece e depois evapora, por isso a imagem que tenta dar conta da memória pela descrição do espaço, da cerca nos fundos do terreno até a mureta branca da fachada, como se no caminho arrastasse consigo a história de todos nós, por isso a reunião de tantos encontros em um só plano, como se a vida inteira coubesse em uma caixa de costura, por isso a visão da casa e do pátio e dos menores arranjos sofrendo nossa ação, dia após dia.

1 de julho de 2015

aterro muda praia


Não há como saber que horas são. Nem mesmo se é dia ou noite. Ambos os cenários parecem verossímeis e repletos de detalhes que tanto servem para comprovar quanto para desmentir. Há alguma luz, porém de natureza indefinida. Poucos carros circulam mas esta é uma via secundária, de toda maneira. Frio e calor também se fundem em uma temperatura amena com picos de rigor. O vento que sopra pode ser cortante ou abençoado. Estou descalça no meio da cidade ou em pleno sertão. A fome e o cansaço - ainda que pequenos - se somam um ao outro sem qualquer prioridade. Já faz um ano. Estamos no mesmo lugar. Um véu de miragem repousa sobre tudo que a vista toca sem discernir. Os traços se diluem na distância, as arestas amolecem conforme o ponto de fuga se dirige ao horizonte. Estou aqui há muitos séculos. Ora de um lado, ora de outro. A cena se repete indefinidamente: localizar a órbita e operar no limite desta referência, dando voltas em torno de um núcleo inteiramente imaginário. Colar um centro no que é apenas margem. Viver um ano em quinze dias. Percursos onde se esfacela a relatividade do tempo. Anos-luz.

30 de junho de 2015

Coisas perdidas em espaços delimitados


Voltar a esta casa depois de tanto tempo, depois de tudo, soa como ter esquecido uma série de objetos preciosos no quarto de um hotel. E só lembrar com pelo menos um país, talvez um oceano de distância. O par de meias grossas que usamos para dormir no inverno. O livro que ganhamos de presente e cuja dedicatória nos faz sentir menos solitários sobre a face da terra. O estojo de maquiagem retirado da mala na última hora para um ajuste milimétrico do tom da pele e abandonado sobre a pia. O cachecol de lã mesclada que usamos para compor nosso melhor retrato. Qualquer coisa de suma importância. A imagem do objeto esquecido, você deixando o quarto, a porta fechando pela última vez naquela cidade aonde provavelmente jamais retornará. Tudo isso comparado ao fato de voltar a esta casa, a esta familiar porém vaga configuração de paredes e assoalhos da qual vai brotando uma espécie de culpa auto dirigida, muito por conta da displicência que é própria do fato de estarmos vivos, tudo isso acaba por denegrir parte da viagem, a vinda, o primeiro plano da memória. Por outro lado, o conhecimento prático dos fatos nos concede uma réstia de esperança, projetada na falsa promessa do resgate, um resgate sempre atrasado e mal conduzido. Nesse ponto, a água começa a vencer o concreto.

17 de fevereiro de 2015

ano 2


Todas as partes adaptadas. A cor do cabelo, dos olhos, a gargalhada, o espaço entre os dentes. Os hábitos prosaicos e os extravagantes. Nunca tomar café após as seis da tarde. Pedir a conta com um gesto no ar. Olhar firme quando aparece no topo da escada. Do branco estático à cena flagrante. De uma casa à outra. Do canto escuro ao centro da sala. Sem cão, sem livros. A agitação permanente. Novos lugares para os mesmos semblantes. Duas declarações em vez de uma. Outra filosofia. A rua, os quadros, a motocicleta dos sonhos. Vencer o calor com banhos frios. Botões mágicos. Festas no quintal. Nunca escapa o fio da meada. Perde-se a fotografia mas não a imagem.