4 de julho de 2015

1: Não sei andar de bicicleta


Por isso até hoje o cheiro da vegetação queimada, o cheiro da fumaça dos incêndios deflagrados sem estudo, o cheiro que se repete em qualquer fogueira, o cheiro sufocante para muitos, o cheiro que invade o ar coado de nossas casas. Na garagem que apesar do nome jamais abrigou um veículo sequer, na garagem onde a iluminação por si só bastante débil ainda enfrentava o negrume da fuligem que se abatia sobre as paredes, na garagem onde a densa poeira jogava por terra qualquer claridade que pudesse ser multiplicada pelas lei da óptica, na garagem percorríamos os primeiros metros. Aproveitávamos o declive suave, fruto do precário nivelamento do cimento, para pegar embalo e tirar os pés do chão. A blusa de lã pinicava em contato com a pele conforme a excitação da aventura nos fazia suar. As bochechas guardavam o calor gerado pelos movimentos e pelas gargalhadas. Faltava ar, faltava tempo. Revezávamos as posições entre a brincadeira e o descanso sobre os pacotes cheios de tecido, um ciclo após o outro, uma vez e depois mais uma, mimetizando em nossos corpos a crença no infinito que é tão própria da infância. Por isso a alvenaria mal acabada, a parede erguida na ausência do prumo, o reboco assentado sem capricho ou diligência, as texturas acidentais formadas pelo encontro fortuito do tijolo com a argamassa, por isso tamanha displicência. Cada lata de tinta esquecida na prateleira mais alta. Cada garrafa vazia depositada no armário para um uso posterior que jamais se confirmaria. Cada embalagem de presente passada a ferro. Cada tábua do assoalho rangendo sob nossos passinhos entusiasmados. Por isso a cena geral em que tudo isso aparece e depois evapora, por isso a imagem que tenta dar conta da memória pela descrição do espaço, da cerca nos fundos do terreno até a mureta branca da fachada, como se no caminho arrastasse consigo a história de todos nós, por isso a reunião de tantos encontros em um só plano, como se a vida inteira coubesse em uma caixa de costura, por isso a visão da casa e do pátio e dos menores arranjos sofrendo nossa ação, dia após dia.

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