23 de junho de 2014

viagem por terra

Estou em uma praia escura e de areia grossa, onde ninguém jamais pagou para estar. Fecho os olhos e tento seguir. Faço de conta que o chão arenoso é um pântano abissal onde pés e pernas lentamente afundam. Respingos, insetos noturnos, galhos que despencam, a respiração dos animais aquáticos no fundo do tanque. A lama se une ao cascalho, formando uma liga pegajosa e cortante. Caranguejos repousam com as garras em riste. Impossível adivinhar o passo. Sem ver, as mãos estiradas à frente do corpo num gesto automático de proteção, procuro o centro do redemoinho como quem se compraz da posição de cabra-cega. Tateio, tateio. Mais um passo. E outro. Uma corrente gelada engole o corpo da cintura para baixo e penso nas criaturas de sangue frio. Perto daqui alguém dorme. Dois outros conversam na varanda e um terceiro procura pela caixa de bombons. “Só mais um”, implora com voz de criança manhosa. E desaba sobre o mesmo lodo de onde meus dedos ameaçam desenterrar uma enguia. Lembro de quando passamos a primeira noite do ano sobre uma lona. Ao mesmo tempo, na lagoa, um homem velho enfileirava as canoas para refazer a pintura. Armadas em ganchos na parede, as tarrafas recebiam reparos. Dois gatos rondavam a praia à espera dos refugos da pescaria: cabeças de peixe com olhos arregalados, pequeninas piavas que os campistas recolhiam por brincadeira e deixavam morrer ao sol. Amolávamos a faca no concreto. Esquecíamos a existência do telefone. Deitadas sobre a fileira de colchões, adivinhávamos figuras no forro de madeira. Depois do banho, metidas em calças de algodão, acendíamos a espiral de citronela para repelir os pernilongos.
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Saio de casa e dirijo sem parar durante duas horas. Jamais chegarei a tempo de conhecer o sítio onde o grupo se instalou. Um dos rapazes ainda resiste a vestir a camisa e desfila na calçada o corpo bronzeado. A garota de cabelo curto sorri como se posasse para uma fotografia. A outra quer saber as horas, mas jamais chegarei a tempo. Tanto melhor a esterilidade da beira da estrada. A clientela flutuante dos restaurantes de passagem. Esperam por mim no portal que se assemelha a um móbile de berço infantil, com golfinhos dependurados em alusão ao paraíso. Um chocalho para o visitante. Agora é outro litoral. A paisagem mais atulhada e próxima não guarda o mesmo ponto de vista. Faltam rochas de onde saltar para o mergulho. Cessaram os fogos de artifício, assim como o presságio de uma embarcação amiga. Só ficou o lodo habitado por espécies remotas. Dou mais um passo e sinto a fisgada.

Um comentário:

  1. Parabens, Fernanda! Crime seria não publicar. É bom demais pra não ser compartilhado!

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