29 de julho de 2014
3
Deito no chão da sala, onde costumo ficar durante boa parte do dia sem nada nas mãos. Aqui deste ângulo, da altura do pó que a vassoura levanta, acompanho o estômago embrulhar com as horas em claro. Já são dezoito, talvez dezenove ou vinte, não contei. Acusa fadiga, fome, enjoo. A luz acabou por causa da água e do curto circuito. A última lembrança que tenho é do feixe azul cintilante. Um estrondo metálico. Encosto a cabeça no rodapé e deixo agir a gravidade da última noite, as horas assistidas de perto, minuto a minuto, palmo por palmo. Taquicardia. O olho vidrado testemunha o cão que ladra e embala o sono da vizinhança. Rolos e mais rolos de pensamento se agarrando uns aos outros como fios de cabelo a chiclete. Foi assim quando deixei a torre. Uma hora, duas, quatro. Apertava botões a esmo, acendia, apagava lâmpadas. Sacudia lençóis recém-lavados. Nada. O barulho da água nos tijolos mais nítido que nunca e o vulto no alto da passarela. Magda, Magda. Em outro estado, em outro fuso horário. Atravesso a madrugada. O desafio inane de manter-se vigilante, espécie de resistência sonâmbula à passagem das horas. Magda, Magda. Vinte e três, talvez mais. A água procura um buraco por onde escapar. Número de mortos em naufrágio sobe para 64.
21 de julho de 2014
Todo deslocamento é uma forma de catástrofe
Temos pressa. Vamos pelo ar, pela esteira turbulenta e volumosa, deixando
para trás a monotonia dos viadutos, das pontes, das motocicletas.
Abandonamos o asfalto, as dimensões tangíveis. Abrimos mão da
sólida companhia dos arranha-céus. O barulho dos motores Rolls-Royce inunda parte da cidade com o mesmo efeito sonoro de uma sequência de trovoadas, reverberando sobre o oceano onde uma embarcação
solitária emite sinais luminosos. Vai chover. Antes das primeiras
gotas, mergulhamos na vasta massa de nuvens. O branco que passa
veloz pelas janelas lembra um espetáculo de ilusionismo. Voamos
a trinta mil pés. De uma só vez, as persianas caem para abafar a
altitude, mas ainda é possível distinguir a curva acentuada para a
esquerda. Entorpecidos pelo ar pressurizado, fechamos os olhos. Todos
nós fechamos os olhos. Com a chegada da noite, passamos da condição visual para os instrumentos. Altímetro, velocímetro,
tubos de pitot. A sincronia matemática dos aparelhos nos permite
isolar a gravidade. Mas de um segundo ao outro, sem aviso prévio,
todas as variáveis se misturam e já não é possível reconstituir os acontecimentos. O parafuso frouxo, o bombardeio inimigo.
A pane do computador, o vazamento no tanque do combustível. O estol,
o voo controlado em direção ao terreno. Um ângulo de ataque impossível. A rota de colisão. Primeiro a caixa preta.
12 de julho de 2014
4
Na torre era mais fácil. Uma escada de ferro nos ligava ao restante do mundo. Havia relógios de vários tamanhos e janelas falsas. A película sobre o vidro envolvia tudo e todos em um crepúsculo permanente, e a sala daquela maneira, coberta dia e noite pela penumbra, me trazia lembranças do carvão. Tudo tragado pelo alarme do computador. Depois daquele dia, foram outros nove no chão na sala com a televisão ligada. Se aparecia a fotografia da torre, desviava o olhar. Não comi. De vez em quando o telefone tocava: alguém com sotaque estrangeiro me pedia para olhar pela janela. Não olhei. Tranquei as portas e coloquei panos nas frestas. Quando fechava os olhos, surgiam vagos contornos geométricos, figuras rudimentares. Senti que precisava de superfícies macias onde me apoiar. Forrei o chão com cobertores, cortei almofadas e tirei a espuma. O sofá manchado de tinta azul. Recortei a mancha e colei o retalho no vidro. O telefone tocou de novo: Magda, Magda, olhe pela janela. Não olhei. A luz da casa ao lado sempre acesa. Eu procurando o escuro e a luz lá. Tentei atirar alguns caroços de frutas, que caíam na minha frente antes de alcançar a grade. Na rua, alguém mencionava um molho de chaves perdido, o eco chegando aos meus ouvidos e me lembrando das gárgulas. Duras. De pedra. O concreto da pista. Sem olhos, sem pele. A mesa, os computadores, os telefones e o emaranhado de fios. Não pensei em nada disso ao longo dos nove dias. Mas foi nesse período que passei a ouvir melhor, a ouvir coisas que não ouvia antes. Da parede saía um barulho contínuo de água. Para onde corria a água, a quem se destinava a água. Algo despencou da janela do andar de cima, não lembro se um gato ou pedaços de pão. No táxi a caminho do hospital ouvimos uma música. Havia túneis e todos nós erramos o caminho. Ainda estou deitada sobre os cobertores e sobre a espuma esfacelada. Não posso ir ao hospital. Nunca peguei um táxi para ir ao hospital. Foi o gato que despencou da janela do andar de cima, tenho certeza. Meu olho direito começa a inflamar. Magda, Magda. Pela janela. O alarme dispara.
7 de julho de 2014
Primeira tentativa de refazer um percurso aleatório
Atravessamos a passarela no centro velho da cidade. É domingo e caminhamos por vários minutos sem ver mais ninguém. Atravessamos a passarela para chegar ao parque, mas desistimos antes. Em vez disso, entramos no trem com certa pressa. É meio-dia e os outros passageiros sentem fome. Atravessamos a passarela para desviar dos automóveis. Lá embaixo, dois carros prateados disputam a mesma vaga de estacionamento. Com algum tédio, você pergunta o endereço de outro parque, de outra praça, de outro monumento. Vamos de trem. Você se lembra do nome de um mausoléu famoso e ameaça descer na próxima estação, mas desiste antes. Atravessamos a passarela para chegar ao trem. A voz da cabine soa como nos alto-falantes dos aeroportos. Embarque, desembarque. É meio-dia e os outros passageiros sentem o frio na barriga. Atravessamos a passarela para chegar à escada rolante. Emergimos no lado ímpar da avenida, onde nos entregam um panfleto sobre aulas de tai chi chuan. Embarque, desembarque. Você faz ponderações sobre a arquitetura neoclássica. Atravessamos a passarela para driblar o semáforo. Na esquina adiante, dois homens ameaçam se beijar, mas desistem antes. Você se apoia na pilastra enquanto eu sinto fome. É meio-dia. Vamos de trem.
3 de julho de 2014
5
Ainda no chão da sala. Encosto a cabeça no rodapé e observo a mancha. Escura, desorientada, ela se espalha pelo canto onde uma bolha de mofo faz a tinta estufar. Desenho no ar o desenho da mancha. Lembra um gárgula, uma máscara, um pedregulho. Só descobri a mancha depois de arrastar os móveis para o centro do cômodo, porque tinha que percorrer o perímetro da casa com o ouvido rente à parede. Nos primeiros dias foi apenas para ter certeza. Depois passei a rabiscar linhas e setas sobre a tinta, mapeando o trajeto, o comportamento, os desvios modulares e as bifurcações. Tenho certeza de que um padrão começa no exato ponto onde está a mancha, a mancha como indicativo da represa. Mais que isso é difícil. Fiz de tudo para entender, para enquadrar os acontecimentos numa lógica razoável e assim perder o medo. Matemática, física, mecânica dos fluidos. Esquemas, cálculos, fórmulas universais. Setecentas folhas na impressão de postulados e teoremas. O teorema de Gödel sobre a incompletude. E só o que sei até agora é do rato dentro do cano dentro do tijolo dentro da parede. A água está descendo, posso ouvi-la. Sobe para 64 o número de mortos em naufrágio.
1 de julho de 2014
2
Quando deixei a torre foi como irromper no meio do oceano pela brecha de uma escotilha, onde sair era também fazer a água entrar, correndo o risco de ser arrastada por ela. Na torre a inundação era total, em todas as direções, semelhante a uma avalanche que produz fogo e fumaça ao desabar. Depois de sair, não lembro se degrau por degrau ou de um único salto, deparei com o pátio subitamente pequeno e mal planejado. O concreto da pista em vias de derreter. Havia labaredas, sirenes, corpos sem vida. O alarme do computador soava misturado a uma voz mecânica que repetia comandos a ninguém. Dois homens de capuz passaram e o rastro da fuligem ergueu uma tempestade, alterando drasticamente a paisagem. Metais se contorciam dentro das chamas. E o som da estática se fundia às sirenes e à água. O chiado do rádio sem resposta. Uma fileira de sacos plásticos pretos e eu desejando que me levassem também. Me coloquem ali, me incluam na contagem.
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