14 de julho de 2015

2: Volo chaos


A imagem da ladeira colossal, íngreme e pedregosa é a mesma imagem da noite de ontem. Tomo impulso e, num desatino, escolho cair. Da torre também se pode ver tudo e também de lá é possível despencar. O desejo vem à tona em qualquer bifurcação: de um lado, a voz monocórdia que jamais será lembrada; de outro, a cena traumática que não poderá ser esquecida. Mesmo ao custo de alguns arranhões, escolhe-se cair. O homem que vendeu sua alma em troca da imortalidade, na ânsia de se sentir vivo novamente acabou condenado a passar a eternidade em uma gaiola. A torre é a prisão onde o bruto ganha contornos suaves. A amplitude do campo, o alcance do sentido que nos torna crentes, mesmo isso acaba por definhar sob o peso dos radares, das ondas do rádio, dos ruídos eletrônicos. Em pouco tempo relegamos toda decisão ao cálculo matemático e atravessamos dezenas de horas na sala escura sem janelas. A próxima chave que se dissipa é o som dos jatos cortando o ar em potência máxima. O estrondo produzido pelo esforço da frenagem. O espetáculo se apaga, assim como o mar desaparece para quem o encontra todos os dias.

4 de julho de 2015

1: Não sei andar de bicicleta


Por isso até hoje o cheiro da vegetação queimada, o cheiro da fumaça dos incêndios deflagrados sem estudo, o cheiro que se repete em qualquer fogueira, o cheiro sufocante para muitos, o cheiro que invade o ar coado de nossas casas. Na garagem que apesar do nome jamais abrigou um veículo sequer, na garagem onde a iluminação por si só bastante débil ainda enfrentava o negrume da fuligem que se abatia sobre as paredes, na garagem onde a densa poeira jogava por terra qualquer claridade que pudesse ser multiplicada pelas lei da óptica, na garagem percorríamos os primeiros metros. Aproveitávamos o declive suave, fruto do precário nivelamento do cimento, para pegar embalo e tirar os pés do chão. A blusa de lã pinicava em contato com a pele conforme a excitação da aventura nos fazia suar. As bochechas guardavam o calor gerado pelos movimentos e pelas gargalhadas. Faltava ar, faltava tempo. Revezávamos as posições entre a brincadeira e o descanso sobre os pacotes cheios de tecido, um ciclo após o outro, uma vez e depois mais uma, mimetizando em nossos corpos a crença no infinito que é tão própria da infância. Por isso a alvenaria mal acabada, a parede erguida na ausência do prumo, o reboco assentado sem capricho ou diligência, as texturas acidentais formadas pelo encontro fortuito do tijolo com a argamassa, por isso tamanha displicência. Cada lata de tinta esquecida na prateleira mais alta. Cada garrafa vazia depositada no armário para um uso posterior que jamais se confirmaria. Cada embalagem de presente passada a ferro. Cada tábua do assoalho rangendo sob nossos passinhos entusiasmados. Por isso a cena geral em que tudo isso aparece e depois evapora, por isso a imagem que tenta dar conta da memória pela descrição do espaço, da cerca nos fundos do terreno até a mureta branca da fachada, como se no caminho arrastasse consigo a história de todos nós, por isso a reunião de tantos encontros em um só plano, como se a vida inteira coubesse em uma caixa de costura, por isso a visão da casa e do pátio e dos menores arranjos sofrendo nossa ação, dia após dia.

1 de julho de 2015

aterro muda praia


Não há como saber que horas são. Nem mesmo se é dia ou noite. Ambos os cenários parecem verossímeis e repletos de detalhes que tanto servem para comprovar quanto para desmentir. Há alguma luz, porém de natureza indefinida. Poucos carros circulam mas esta é uma via secundária, de toda maneira. Frio e calor também se fundem em uma temperatura amena com picos de rigor. O vento que sopra pode ser cortante ou abençoado. Estou descalça no meio da cidade ou em pleno sertão. A fome e o cansaço - ainda que pequenos - se somam um ao outro sem qualquer prioridade. Já faz um ano. Estamos no mesmo lugar. Um véu de miragem repousa sobre tudo que a vista toca sem discernir. Os traços se diluem na distância, as arestas amolecem conforme o ponto de fuga se dirige ao horizonte. Estou aqui há muitos séculos. Ora de um lado, ora de outro. A cena se repete indefinidamente: localizar a órbita e operar no limite desta referência, dando voltas em torno de um núcleo inteiramente imaginário. Colar um centro no que é apenas margem. Viver um ano em quinze dias. Percursos onde se esfacela a relatividade do tempo. Anos-luz.