28 de setembro de 2014
Terceira tentativa de refazer um percurso aleatório
Café coado no lenço de papel. Comida sem sal. Atravesso a Avenida Paulista com um travesseiro na mão. Termina a quinta-feira. Lavo parte da louça. Deito de costas para a janela. Não me concentro em nada. Faço de conta que estou à vontade. Espalho pequenos objetos pelo quarto. Improviso um escritório na mesa de jantar. Macarrão com queijo. A mala abarrotada de peças inúteis. Faz frio à noite. Arrasto os chinelos pelo apartamento, pela calçada. Acabou a água. Não vejo graça nos arranha-céus. Resisto ao coro dos alto-falantes. Décimo primeiro andar. O elevador demora. Há poucos motivos para sair. O elevador demora. Macarrão com queijo. O saco de lixo é sempre grande. O elevador demora. Confundo os nomes dos bairros. Pego o ônibus certo no sentido contrário. Macarrão com queijo. O porteiro não me cumprimenta mais.
20 de setembro de 2014
o menor osso do corpo é o estribo
Gosto da mesma coisa que não gosto: o tufo de pelos no canto da sala. A maneira incisiva como opina sobre livros e placas. O fato de que nunca se afasta da conversa e, quando alguém se afasta, tenta resgatar com perguntas fechadas. A música da banda que não existe mais, o avião desaparecido. A palavra obsoleta que descreve o mesmo fato e causa espanto. O jeito feroz de adivinhar pensamentos com base em outras mulheres - se me transformo na bruxa. Quando aponta uma imagem banal e depois esquece. Quando dirige e se perde. Quando estrala os dedos e examina em detalhes as tatuagens da adolescência. O tamanho dos ombros. A forma como as motocicletas estacionam. Quando prepara o almoço e exagera no alho. Quando erra a soma de dois números. Quando se atrasa - sempre se atrasa. Quando dorme.
13 de setembro de 2014
tudo o que há para ser visto
seria preciso abandonar o refúgio da hipótese e partir em direção a um campo bem menos solidário às nossas investidas, sem esquemas de conduta ou viagens no final do ano, sem nada realmente justo do ponto de vista da recompensa, e torcer por uma aparição repentina, por um pedido de vigilância e proximidade, ainda sem sinal de concordância, só o corpo e sua figura pacata, só isso flutuando em nome de um passado mais recente, porém inviolável, só isso ganhando o território como quem aposta um olho na guerrilha, o outro no deserto e o restante empenhado na fuga, ainda sem qualquer prioridade ou instância de defesa, só isso e a trilha a ser aberta no meio da mata, onde por força do tempo adivinhamos as primeiras pegadas, ainda assim na dependência do menor interesse, da menor lembrança, desvendando sentidos ocultos em bilhetes escritos às pressas, não por falta de opção, mas por desleixo, só isso e o círculo que encolhe um pouco a cada dia, ainda sem golpes de sorte ou marcas na pele, só isso e a passagem como prova, só isso e os termos de um acordo sem privilégios, só isso e o intervalo cada vez maior entre um ponto e outro.
7 de setembro de 2014
correção de deriva ou os efeitos do vento
No chão da sala. Os espelhos estão cobertos com papel pardo. A luz que incide aqui dentro é fraca e sem cor, estancada pelo papelão que reveste a janela. Assim que soube da torre, das ameaças e do número de mortos, passei a tomar providências. Distribuí os utensílios da cozinha em pequenos pacotes, as facas e descascadores, o abridor de latas, a tesoura. Enrolei fita isolante nos dedos das mãos e dos pés, mais sujeitos ao choque. Removi uma a uma as fotografias dos álbuns tomados pelo mofo e as organizei em pilhas / você para e observa a menor delas, antes de notar a mancha amarela sobre o papel. A mancha amarela é o casaco que ganhei de presente. Estou sozinha há quarenta e três dias. Continuo a imprimir teoremas matemáticos e a fazer anotações importantes na parede. Aqui e ali, me detenho nos pontos onde a tinta descascou. Você observa tudo de um ponto mais alto, como se buscasse uma visão geral da cena. Estou sozinha desde que saímos do salão. Da torre. Da festa suspeita em que deixei para trás o casaco amarelo. Você chega mais tarde e observa o cabide na entrada, depois desaparece. Continuo sozinha há quarenta e três dias. A água ainda escorre dentro da parede, mesmo com o registro fechado. O telefone fica fora do gancho. Você toca a campainha e estica a mão. Eu deito e durmo e no sono recupero a imagem das suas unhas recém-cortadas. Você não usa anéis, nem toca piano.
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